quarta-feira, maio 09, 2007

Este texto sobre a guerra colonial é muito bom!


Era fácil morrer

Enterrámos-lhe a faca de mato, o revólver e a farda. Tinha estado no Niassa com autorização para matar pretos, e tudo aquilo cheirava a sangue, e cheirou durante muitos anos, mesmo enterrado no chão fértil, incerto da Matola, até se oferecer um tiro nos miolos, já em Xabregas, após ter queimado todas as veias, assaltado ourivesarias na Almirante Reis e assassinado negros a tiro, pelas costas, na Damaia.
Foi meu padrinho.

Nas ex-colónias era fácil morrer. Estava-se vivo, morria-se. Havia acidentes de caça, acidentes no mato, acidentes de trabalho, acidentes rodoviários, acidentes. Cortavam-se dedos e saravam-se a seguir, lavados com água fria. Se não saravam, amputava-se o braço ou morria-se de septicemia. Era fácil.
A vida de um preto valia o preço da sua utilidade. A vida de um branco valia mais, muito mais, não que valesse grande coisa. A vida de um bife da África do Sul, dos que vinham com chapéu de mexicano apanhar sol na Polana, isso sim, era vida. Esses, sim, sabiam lidar com pretos, mantê-los com rédea bem curta.
Matar um preto, no Marcelismo, já era chato; a polícia, se descobrisse, vinha fazer umas perguntas. “Então, ó Rebelo, não viu o peão, e matou-o?” “Não, agente Pacheco, era noite, não havia luzes na picada, o gajo ia bêbado, caiu-me para cima da carrinha, o que é que queria que eu fizesse?!” “Que parasse, homem, que prestasse assistência ao preto!” “Eu pensei que lhe tivesse dado só uma pancada, que o gajo acordasse dali a umas horas, que pensasse que era da bebedeira... é pretalhada... seguia caminho prá palhota e nunca mais se lembrava disso. A culpa é deles, e depois lixam-nos a vida.” “Vou fechar os olhos desta vez, mas veja se não se repete, ó Rebelo, que agora temos ordens da metrópole para investigar estes acidentes.”
Matar um preto, a partir de certa altura, começou a dar chatice.



Calou-se para sempre


No Maputo, após a independência, e mesmo antes, os militares desmobilizados do exército português, que não regressaram à pátria, por serem moçambicanos, negros ou brancos, foram perseguidos e assassinados. Dizia-se, entre brancos, que era a FRELIMO em vingança de guerra. Os primeiros a cair foram os negros; depois, procuraram-se os brancos; havia comités de bairro; formavam-se comissões. Ia-se a casa. Revistava-se. Tudo era possível. Morrer sempre foi fácil, antes ou depois.

O meu padrinho pediu que lhe dessem sumiço às recordações da tropa. A minha mãe enterrou-as. Tinha sido educado no mais profundo desprezo pelo negro. Quando fez 19 anos, e o mandaram para o Niassa, partiu contente. Ia lutar pela sua califórnia portuguesa.
Descia a Lourenço Marques de nove em nove meses, mas já não era o mesmo. Deixou crescer a barba. Era a guerra, e o meu padrinho nunca falou da guerra. Ninguém falava da guerra. Suponho que não se fale da guerra, nunca.
“Então, são tesos, os gajos, lá no Norte?” O meu padrinho sorria, não respondia. “Mas vocês limpam-lhes o sebo, hein? Eles ainda vão ver quem é quem vai mandar nisto” O meu padrinho falava pouco e permanecia pouco tempo em roda social. Fechava-se no quarto a fumar, e calou-se para sempre. Mesmo que tenha dito uma ou outra coisa depois, “sim, não, talvez, não sei”, nunca mais falou. Tinha vergonha, o meu padrinho. Olhava-me com uns olhos vivos, e tinha vergonha de mim. E eu amava-o. Era um homem moreno e bonito. Eu tinha 10 anos em fogo, e embora não soubesse o que era o sexo, sonhava viver com ele intensas aventuras eróticas. Tinha sempre o quarto a meia-luz e fumava muito. Não sabia o que dizer-me. Tinha vergonha de mim. Eu fechava os olhos, e fantasiava que nos amarravam, abraçados um ao outro, e nos atiravam a uma piscina incendiada, e que a intensidade do que era realizado, essa violência, nos queimava de prazer. O meu padrinho acordou o meu desejo, e, uns anos mais tarde, matou-se.




Nomes pretos e nomes brancos

O meu padrinho nasceu em Lourenço Marques; nunca pronunciou as três sílabas muito difíceis de Maputo. Ma-pu-to. As cinco de Lourenço Marques fluíam líquidas. Muito brancas.
Maputo era nome de preto. Um preto, uma zona selvagem, um rio podiam chamar-se Maputo, Incomati, Limpopo, Zambeze. Uma vila de pretos podia chamar-se Marracuene, Inhaca, Infulene, Xipamanine. Uma cidade de brancos, não. Tinha de ser Lourenço Marques, Beira, Mocímboa da Praia.
Xai-Xai era de preto. Ponta do Ouro era de branco.
Nenhum branco que tenha saído de Lourenço Marques se habituou a chamar-lhe... outro nome qualquer. Como geleira. Um branco pensa geleira, e emenda, em milésimos de segundo, para frigorífico. Pensa galinha, corrige para frango. Pensa Lourenço Marques e diz, com gozo, com desforra, como se manter um nome fosse manter o que designa, Lourenço Marques. Diz muito longamente e saboreia as sílabas todas. Lou-ren-ço-Mar-ques.
A vida, em Lourenço Marques, era serena, morna, sibilada, muito fluida como o seu nome.
O meu padrinho quando conseguiu sair em segurança do Maputo, olhou para trás, na estrada do aeroporto, e disse, “nunca mais regressarei a Lourenço Marques”. Cumpriu-se.




O Norte era muito longe

No Marcelismo, os navios acostavam cheios, todas as semanas. Os colonos do marcelismo chegavam misturados com as tropas e ficavam por ali, alugavam casa, instalavam-se, punham os filhos no liceu, na escola industrial, arranjavam um mainato recomendado, ou arriscavam um que lhe fosse bater à porta; alguns compravam uma cantina perto, a quinhentos ou seiscentos quilómetros da capital, e vendiam carvão, petróleo, farinha, peixe seco e cerveja aos pretos que saíam do mato e não falavam português. Aprendiam a falar todos os dialectos, eram intermediários em negócios, safavam-se bem. As tropas iam para o Norte e arranjavam, através dos programas de rádio, madrinhas de guerra a quem enviar aerogramas. O meu sonho era ser madrinha de guerra, mas era muito nova. Se tivesse 15 anos... As madrinhas de guerra eram uma espécie de namoradas pelo correio e eu gostava de ouvir os programas em que se enviavam mensagens, “Maria Teresa dos Santos, madrinha do furriel Diamantino Simões, colocado em Nova Viseu, na companhia 3470, envia cumprimentos seus e da família, e faz votos pelo seu breve regresso com saúde e boa disposição”.
Sabíamos tanto sobre o que faziam os tropas como sobre a política do país. Nada. Sabíamos nada.
Não descrevo uma terra ignorando que nela existia uma guerra. Havia uma guerra, mas não era visível a Sul; não sabíamos como tinha começado, ou para que servia exactamente. Pelo menos, até ao 25 de Abril, não se falou disso na minha presença. Nem se evitou falar.
Havia guerra porque havia turras. A guerra era no Norte, mas não tomávamos consciência da sua gravidade, não se falava em soldados dos nossos que tivessem sido mortos, não existia para nós esse vocabulário que agora conhecemos, emboscadas, guerrilha, mina disto e daquilo. Achávamos que estavam lá pelos quartéis a cumprir a tropa, a fazer umas acções de propaganda. A dar uns encostos nos negros que não se portassem bem, o que era normal. A limpar-lhes o sebo, se fossem teimosos e não obedecessem. Era isso que o meu padrinho devia andar a fazer; dar uns encostos nos negros.
Disseram-me que, sim, pois, havia uma guerra, mas era no Norte, e o Norte era muito longe. Era lá em cima na terra dos macuas e dos macondes. Os turras queriam roubar a terra aos portugueses. Vinham da Tanzânia, e eram pretos e maus. Era preciso defender a nossa terra, por isso é que vinham os soldados de Portugal. Também havia soldados pretos. Esses, faziam-nos comandos, para irem à frente e morrer primeiro.




Uma África de brancos

Após o 25 de Abril já ouvia falar livremente sobre o assunto. Até porque os turras entraram pela cidade dentro e foi necessário explicar de onde vinham, quem eram esses invasores cheios de poder.
Percebi que os colonos desejavam independência de Portugal, mas sob poder branco. Eventualmente, partilha de funções administrativas com um ou outro mulato educado, maleável. Que alimentaram a ideia de que arrasar a FRELIMO seria como matar dois coelhos com uma só cajadada. Aquela terra não seria para os negros nem para a metrópole, mas para os brancos que ali viviam. Seria uma independência branca; pretendiam erguer, ali, uma África do Sul-califórnia-portuguesa. Ainda hoje é essa a nostalgia. Quando dizem, “aquilo da independência foi mal feito, e os culpados foram o Soares e o Almeida Santos, que entregaram aquilo aos pretos”, eu traduzo, “aquilo que entregaram aos pretos deviam tê-lo entregue a nós, que, depois, logo tratávamos da negralhada”. Quando revelam, com lágrimas sinceras, "deixei o meu coração em África", eu traduzo, "deixei lá tudo, e tinha uma vida tão boa".
O meu pai, na véspera de morrer, sonhou que andava a fazer uma instalação no Sommershield, e que eu tinha ido com ele na carrinha; depois fomos petiscar ao Sabié, uns pregos; coca-cola, eu; ele, um tricofaite. Estou a ver o meu pai a sorrir. "Gostas?" Sorrio. "Gosto".
Precisamos de tempo para compreender. Para matar. Para poder olhá-los de novo na cara. Com amor. Com o mesmo amor.
Para perdoar.


Publicada por Isabela

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