domingo, março 01, 2009

Gentil Viana faleceu há um ano / Texto de Adolfo Maria

Gentil Viana faleceu há um ano

A 23 de Fevereiro de 2008 falecia Gentil Ferreira Viana o destacado vulto da luta pela independência de Angola, íntegro cidadão e brilhante pensador.
Nos seus tempos de aluno do curso complementar do liceu de Luanda, 1953-1954, Gentil Viana impunha-se aos colegas pela sua capacidade de raciocínio e pela sua convivialidade. Apaixonado pelo seu país e pelos feitos dos mais velhos (entre eles o seu pai Gervásio Viana, fundador da Liga Nacional Africana) na resistência ao sistema colonial e na dignificação do homem angolano, Gentil Viana mobilizava através de eloquentes conversas e discussões os seus colegas em torno das questões ligadas à identidade nacional. Em grupos mais restritos e mais clandestinos falava da necessária independência do País. Em Portugal, para onde foi fazer os seus estudos universitários, elaborou um plano para o controle da Casa dos Estudantes do Império pondo esta associação de estudantes oriundos das colónias portuguesas ao serviço das causas nacionalistas daqueles países sob dominação colonial. Em 1961 participou na saída clandestina de cerca de cem estudantes africanos para França, o que permitiu aos movimentos nacionalistas, em especial o MPLA, receberem repentinamente numerosos quadros. Em breve o jovem advogado Viana foi integrado na diplomacia do MPLA, acompanhando o presidente do Movimento, Mário de Andrade às sessões do comité de descolonização da ONU e a visitas a vários países.
Em 1962, na Conferência Nacional do MPLA, em Leopoldville, num intenso debate, Gentil Viana e Viriato da Cruz confrontaram as suas ideias sobre o momento político que se vivia e as saídas para o desenvolvimento da luta armada e implantação do MPLA no interior. Viana apresentou um projecto de desenvolvimento da guerrilha e de tácticas a seguir no Exterior pelo MPLA, plano esse que a assembleia aprovou.
Pouco tempo depois, Gentil Viana, descontente por o seu plano não estar a ser aplicado e pela estagnação que continuava a existir, abandona a actividade militante e acaba por ir para a China onde lhe foi dada a tarefa de traduzir para português as obras de Mao-Dze-Dong e outros. Aproveita este período para estudar filosofia e obras sobre as grandes revoluções do século XX: nomeadamente a soviética e a chinesa.
Em 1971, na sua visita à China, Agostinho Neto convida-o a retomar a actividade militante no MPLA e é então que Viana e outros quadros idos da Frente Leste frequentam um curso específico de formação militar superior. Regressado esse grupo à Frente Leste, em meados de 1972, encontra uma situação caótica: a ofensiva militar portuguesa tinha empurrado as forças guerrilheiras para a fronteira, a desorganização e falta de motivação eram generalizadas entre as populações refugiadas, militantes, quadros, guerrilheiros. Eram constantes as queixas contra as negligências de dirigentes ou seus comportamentos. Gentil Viana viu que era necessário por em causa aquilo que já mostrara a sua ineficácia e estava na base do descontentamento geral, ou seja, as estruturas e as concepções de condução existentes. Concebe um plano que apresenta ao presidente Agostinho Neto. Este aceita. Trata-se do «movimento de reajustamento». O ponto de partida foi o congelamento do comité director (a direcção do Movimento). Assim eram temporariamente suspensas as hierarquias, o que possibilitaria às pessoas falarem livremente apontando as falhas da organização e dos responsáveis de todos os escalões. Todos passaram a ser iguais, sem qualquer espécie de coacção. O movimento de reajustamento foi uma gigantesca discussão dentro do MPLA como nunca dantes houvera e com entusiasta participação de todos. Os documentos teóricos que Gentil Viana elaborou para o arranque do reajustamento, a metodologia proposta representam um pensamento profundo e uma enorme criatividade.
Em finais de 1972, Gentil Viana é nomeado conselheiro do presidente, e realiza com êxito a tarefa de resolver o imbróglio político criado pelo surpreendente acordo que Neto fizera com Holden em Kinshasa e que tanto penalizava o MPLA.
No início de 1973, a situação geral do MPLA, política, militar e diplomática era muito má. Na Frente Leste surgira a Revolta do Leste, como pretexto à súbita retirada de quadros para a Frente Norte, toda actividade política e militar estava parada. Na Frente Norte, a manipulação do reajustamento pela presidência do Movimento, concluído em Fevereiro de 1973, ocasionou descontentamento em vários quadros e militantes que viam persistir a degradada situação.
É então que Gentil Viana se empenha em mobilizar clandestinamente militantes e quadros para um pronunciamento a favor de medidas que transformassem o MPLA na organização eficaz que a luta requeria e os militantes desejavam. Assim nasceu o famoso “Apelo dos Dezanove” porque foi este o número dos seus primeiros subscritores. Nesse apelo, concebido por Viana, atacava-se o presidencialismo absoluto que atrofiava a organização, apelava-se para a realização de um congresso para acabar com as divisões existentes, instituir a prática democrática no MPLA e definir as estratégias de luta adequadas. Este pronunciamento chamou-se Revolta Activa. Ele surge numa situação interna e externa extremamente complexa. O mundo estava dividido em dois blocos profundamente antagónicos: um, o Ocidente sob a capa dos Estados Unidos que, em nome da democracia apoiavam as ditaduras africanas e da extrema direita nos continentes americano, asiático, e europeu (Portugal e Espanha) e faziam a guerra ao povo vietnamita; o outro, chamado Bloco do Leste, que apoiava os movimentos de libertação, e onde imperava a União Soviética, constituído por países de partido único que exerciam um poder ditatorial. No movimento nacionalista angolano, a FNLA e o MPLA estavam em profunda crise, essencialmente por erros cometidos no seu seio e na condução da luta. É neste contexto que surge o apelo da Revolta Activa cuja questão central era a democracia no seio do MPLA e no seio da Nação. Para lá da sua urgência naquele momento político angolano, a questão da democracia era uma questão de grande actualidade para os povos de todo o Mundo necessitando uma profunda reflexão não só porque estava a ser secundarizada em todos os países, mas também por ser um valor civilizacional, determinante instrumento do progresso humano. Nesse apelo, Viana punha questões universais que só décadas mais tarde seriam objecto de decisões internacionais.
A independência de Angola deu-se nas condições dramáticas que conhecemos. Poucos meses depois, Gentil Viana e outros seus companheiros viriam a ser perseguidos e encarcerados a 13 de Abril de 1976, como castigo do pronunciamento que haviam feito dentro do MPLA em 1974. Fez greve de fome, dizendo que não lutara pela independência do seu país para estar guardado por soldados estrangeiros, que eram cubanos. Dos maus tratos recebidos ficou cego de um olho. Em finais de 1978 foi deportado para o estrangeiro, tendo fixado residência em Portugal, onde se encontrou sem documentos de identidade, numa situação de apátrida. Aí exerceu a advocacia. Simultaneamente com a sua profissão reunia e discutia os problemas do país com alguns companheiros também ali exilados, tendo-se formado um grupo de reflexão que viria a desencadear em 1989 e 1990 uma actividade diplomática para apoio às suas propostas de fim da guerra civil em Angola, um objectivo que deveria ser conseguido sem a intervenção estrangeira e recorrendo à mediação angolana, ou seja fazendo recurso à própria nação. Desta actividade destacam-se as conversações com os dirigentes de Cabo Verde e com dirigentes de partidos portugueses. São essencialmente da autoria de Gentil Viana os documentos de denso conteúdo que então foram elaborados: Apelo a Chefes de Estado africanos; documento de análise das origens do conflito angolano e dos interesses da cada uma das componentes do conflito: MPLA e UNITA, como componentes internas, África do Sul, Estados Unidos, Cuba e União Soviética, as componentes externas; memorando aos chefes de estado dos países envolvidos no conflito angolano.
Entretanto, e secretamente, a UNITA e o MPLA começaram a negociar, chegando aos acordos de Bicesse que consagraram a desigual partilha do poder pelos dois contendores e uma democracia formal em que a vitrina era a constituição de numerosos e ineficazes pequenos partidos.
Sempre pensando que o país só poderia avançar se todas as vontades fossem mobilizadas para um objectivo de interesse comum, Gentil Viana viu nas tréguas instaladas a possibilidade de se recorrer à Nação para garantir a Paz. Deslocou-se a Luanda para apresentar o seu plano de convivência nacional ao presidente da república e aos dirigentes dos partidos, aos responsáveis da igreja católica e protestante, a membros da sociedade civil. Esse plano, inicialmente aceite com interesse e depois desprezado pelos dois partidos que já se preparavam para o ajuste de contas de Outubro de 1992, contém elaborados princípios e metodologias para a intervenção da Nação na arbitragem do conflito e na construção de normas de convivência, garantia de uma real reconciliação nacional.
Pouco depois de retomada a guerra civil em Angola, Gentil Viana teve um AVC de que conseguiu recuperar. O país continuou mergulhado na guerra, mas Viana não deixava de pensar num futuro mais feliz para a pátria. Os anos foram passando, foi-se debilitando e, por fim, tomado por implacável doença. Faz agora um ano que morreu, tinha setenta e dois anos de idade.
Gentil Viana merece ser estudado porque, possuindo uma enorme inteligência que pôs ao serviço da causa da liberdade do povo angolano, produziu sempre um pensamento inovador não só angolano mas universal. A sua integridade, a sua postura de não aceitação do statuo quo paralisante, a sua capacidade em fazer rupturas com o etablishement, a sua procura audaciosa de novos caminhos para a liberdade e dignidade dos homens, a sua coragem ao enfrentar e desafiar a opressão fazem dele uma referência nacional e um incentivo para que as novas gerações procurem um caminho para o povo angolano onde não tenha lugar o rastejar da submissão e onde a dignidade seja um valor cultivado.

Adolfo Maria
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2008

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