quinta-feira, setembro 23, 2010

Casa Pia/ Opinião de Mário Brochado Coelho

Uma opinião





1. É necessário que se saiba que a situação actual da Justiça afecta os cidadãos que a ela recorrem e todos os agentes de sua administração (magistrados, procuradores, advogados, funcionários e polícias com poder de investigação ou apoio), criando uma descrença generalizada que corrói não apenas a chamada “confiança no sistema judiciário português” mas o próprio dia a dia de cada pessoa e de cada profissional. Ninguém, pois, pode ser indiferente ao que se passa. Só por isso, entendi que não devia deixar de fazer ouvir a voz de um advogado com mais de 40 anos de profissão em prática individual e que se situa fora do mundo caótico do espaço dito mediático, das lutas corporativas do sector da justiça, e do quadro político-partidário anexo.



2. Tomemos por motivo apenas os últimos acontecimentos do chamado “caso Casa Pia” e comecemos por recordar em linguagem simples alguns princípios básicos:

a) a administração da justiça constitui um polo central do edifício de um estado democrático devendo ser tratado em regime de alta prioridade a todos os níveis (recursos humanos e financeiros, em particular) e não apenas como algo de meramente lateral e acessório;

b) a verdadeira legitimidade de todos quantos actuam na administração da justiça - e em particular de quem julga - nasce e decorre, em meu entender, apenas da bondade dos resultados por si produzidos;

c) a justiça praticada numa dada sociedade tem a ver com os quadros ético e legal imperantes nessa mesma sociedade e as decisões proferidas deverão, em regra geral, “condizer” com as melhores aspirações de todos os cidadãos organizados de forma democrática, pelo que não é aceitável uma justiça obscura ou clandestina ou subjectiva que não seja explicada e suficientemente entendida pelo povo (que, aliás, é constitucionalmente em nome de quem é feita a justiça);

d) ou seja, só é verdadeira justiça aquela que respeita estes princípios e os executa com uma celeridade adequada a cada caso concreto e aos seus efeitos declaratórios, preventivos e/ou punitivos.



3. Não tenho conhecimento dos termos do processo do “caso Casa Pia” e por isso recuso-me a exercer esse velho jeito português de dar palpites sobre o que não se sabe, duvidar de tudo e de todos para aumentar a suspeição geral, e de usar o “sábio” critério lusitano do “cheira-me que...”. Mas sou vítima e beneficiário das consequências negativas e positivas de um mau processo, uma má sentença, uma má justiça. Só com esta base, portanto, me arrisco a concluir o que, porventura, muitos já concluíram: o processo Casa Pia começou mal, desenvolveu-se mal e produziu uma decisão (ainda não final) que não apazigua os receios dos cidadãos, os direitos tanto das eventuais vítimas como dos arguidos, e o “bom nome” das magistraturas, dos advogados e de todos os demais agentes judiciários. Mas que quero dizer com a palavra “apaziguar” ? Uma decisão judicial, para além de dever ser juridicamente correcta, tem de se enquadrar no nível de exigência ética da globalidade da sociedade em que se insere e a que se dirige, tem de ser um acto de bom senso exemplar, e tem que ser claramente fundamentada e explicada. Ora, em meu entender, o produto destes largos anos de luta judicial não é compreensível e poucos foram os que o tentaram tornar compreensível. Ou seja, tudo leva a crer que “não foi feita justiça” em termos úteis e adequados a uma sociedade democrática. Ouvem-se apenas as vozes bárbaras dos que sempre bradam por sangue, fogueiras e penas de morte quer para todos os que “se suspeite” serem pedófilos quer para a administração da justiça portuguesa no seu todo quer para todos aqueles de quem pessoalmente não gostem.



4. Não é, assim, de estranhar que também se ouçam magistrados a acusar procuradores, uns e outros a apontar para os advogados e vice versa, os jornalistas a denunciar tudo o que, na sua ignorância quase generalizada, julgam perceber, mas que viabilizem mais títulos tabloides, mais comentários de pseudo-comentaristas (com uma ou outra excepção), mais falsos debates sobre enganos, erros ou nada. Reina a confusão. Uma confusão aumentada, como de costume, pelos muitos que sabem e gostam de navegar nestas águas inquinadas, lançando boatos, manipulando a opinião pública, pressionando os agentes da justiça, lançando campanhas corporativas contra “os outros”.



5. O mundo da justiça não deve ser um mundo de silêncio total mas tem de ser um mundo de contenção por parte de todos e fornecer uma publicidade qualitativamente fidedigna e autêntica dos factos principais de cada processo para que os cidadãos saibam o que nele acontece e se decide e porquê. Já houve tempo em que o direito era, ele próprio, secreto, mas ainda hoje muito se faz no mundo da justiça que é deliberadamente escondido do “público”, das próprias partes litigantes e até de alguns decisores distraídos...



6. Direi, pois, que fiquei sem saber se os arguidos não confessos são ou não culpados, se os ofendidos são ou não vítimas, se esta decisão (ainda não final) é correcta ou não. Fiquei na mesma, portanto. Pressuponho abstractamente, porém, que no meio da amálgama de todos os milhares de páginas dos autos se poderá, aqui e ali, pressentir quer a existência de algumas eventuais vítimas e de alguns eventuais inocentes, quer de alguns falsos ofendidos e de alguns eventuais criminosos... Mas nada mais. A tragédia da Casa Pia é tão grande que em todo o lado se pressentem os seus sinais “responsavelmente” escondidos ao longo dos anos.



7. As decisões judiciais para terem qualidade devem tomar em conta o sobressalto social e axiológico existente em torno dos factos em apreço, mas devem fugir - têm de fugir ! - de toda e qualquer tentação para tornar o seu trabalho mais fácil ou mais “aceite”, fazendo coincidir ponto por ponto os seus juízos de cada pulsão da dita “opinião pública”. Por isso, os magistrados, em particular, devem ser pessoas com experiência de vida, acuidade de análise social, vigilância sobre si mesmos, sentido ético, espírito de defesa dos valores democráticos, ponderação, serenidade e respeito pelos demais intervenientes processuais. Deverão ter também uma razoável preparação técnico-jurídica, é certo, mas o essencial será sempre o que enumerei atrás.



8. A falta de meios no sector da justiça é simultaneamente uma realidade e um alibi para que tudo continue exactamente na mesma. Os bons agentes de justiça, mesmo nas actuais condições, devem fazer tudo para que a justiça funcione, com empenho e humanidade, mas não devem levar esse seu esforço até ao ponto de caírem em voluntarismos pessoais que ocultem as deficiências do sistema e, assim, as aumentem. Deverão sempre explicar caso a caso as dificuldades que têm, sem parar de exigir o necessário para que a justiça seja igual para todos, de qualidade e atempada. Não estão em causa as suas “carreiras pessoais” e o seu “bom nome”. Está em causa a administração da única justiça de que dispomos dentro de um estado de direito.



9. Mais do que as leis o que deve ser mudado é o modo e o empenho como elas são aplicadas e sindicadas pela sociedade.



10. Concluindo: o caso Casa Pia é apenas um exemplo que de bom só trouxe a aguda atenção social dada quer ao problema da pedofilia quer à escandalosa forma como o Estado cuida dos jovens que estão à sua guarda.



11. Na verdade, o maior culpado de tudo quanto se tem passado e se poderá continuar a passar nas múltiplas “Casas Pias” e instituições similares deste país é o Estado que ainda temos, não entendido em abstracto mas concretamente personificado em todos quantos desde partidos, governos e ministros a gestores, professores e assistentes (religiosos ou não) deixaram que ao longo dos anos se tivesse criado uma cultura e uma prática tão perversas e continuadas.









Mário Brochado Coelho

Advogados

6.9.2010

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