sábado, outubro 14, 2006

Os dois mundos


Mapa 1-Produto Nacional Bruto



Mapa 2-População

Nas projecções de Tikunov, a dimensão de cada país é ajustada de acordo com o valor da variável representada.O mapa 2, que se refere à população, mostra uma apreciável concentração populacional no hemisfério sul, particularmente no continente asiático.O mapa 1, relativo ao Produto Nacional Bruto, põe a nu o contraste chocante entre a extrema pobreza do Terceiro Mundo e a elevada riqueza dos países desenvolvidos.

segunda-feira, março 06, 2006

A nave dos feridos mortos desaparecidos e enlouquecidos

A revolta do navio Orion, da Marinha portuguesa, no dia 2 de Junho de 1973 foi decisiva para salvar a vida de centenas de soldados e população que fugiram dos bombardeamentos do PAIGC na batalha de Gadamael. Este episódio de desobediência a ordens de Spínola, desconhecido até hoje, é indissociável da resistência travada por meia dúzia de soldados no interior do aquartelamento de Gadamael. As duas histórias são aqui contadas por alguns dos seus protagonistas, como o comandante da Marinha Pedro Lauret, o coronel dos comandos Manuel Ferreira da Silva e o grumete Ulisses Faria Pereira. Eles são, com outros, os heróis desconhecidos de Gadamael.Passaram 32 anos desse dia 1 de Junho de 1973 mas o comandante Pedro Lauret ainda se recorda do arroz de tomate com peixe que estava a comer e que era também o jantar da guarnição da fragata Orion em missão no rio Cumbijã. Ali estavam, estacionados nas águas de um dos muitos rios da Guiné, a comer a tomatada de peixe e a beber cerveja gelada enquanto a noite começava a deitar-se sobre a mata de Cantanhez, tão bela quanto sinistra para os milhares de soldados portugueses que a olhavam como um santuário dos guerrilheiros do PAIGC. Foi à hora do jantar que o comandante, então imediato da embarcação, Pedro Lauret recebeu a indicação de que estava a chegar uma mensagem de "alto grau de precedência", ou seja, de António Spínola, comandante-chefe do contingente militar português na Guiné.
O jantar acabou e começava uma inesperada e marcante aventura nas vidas de todos os homens embarcados no Orion. Pedro Lauret entra na cabine onde a mensagem estava a ser descodificada e percebe logo que têm de preparar-se para levantar ferro. A mensagem trazia ordens do Comando Geral a determinar que a Orion subisse o rio e embarcasse uma companhia de paraquedistas que deveria conduzir para o porto de Cacine.
"Não eram dadas explicações mas de imediato nos apercebemos que algo muito grave se passava. Embarcar de noite uma companhia de paraquedistas sem qualquer tipo de protecção, naquele local, era muito arriscado", afirma Pedro Lauret.
A missão secreta chegou à hora de jantar
As ordens destapavam uma outra face da moeda: tirar uma companhia de paraquedistas da região iria diminuir a capacidade militar num local problemático. As missões da Marinha no rio Cumbijã tinham recomeçado em 1972 quando Spínola decidira reactivar cinco aquartelamentos na região de Cantanhez mas a operação não estava a dar resultados. O dispositivo militar tinha sido reforçado com companhias de tropas especiais, paraquedistas e fuzileiros, bem como diversas unidades do Exército mas mal punham o pé for a do arame farpado dos quartéis eram de imediato atacados. "Nunca se percebeu muito bem o objectivo desta reocupação", declara Pedro Lauret que recorda os meios navais envolvidos nessas missões no Cumbijã: a Orion, duas lanchas de desembarque médias (LDM), oito botes zebro, uma companhia de "fuzos".
O jantar acabou de imediato para toda a tripulação. O soldado Ulisses Faria Pereira, grumete electricista e moço da botica, foi um dos que perdeu a refeição. "Ao entardecer já a tripulação comia arroz de tomate com peixe frito. Lembro-me que estava de "quarto" e, por isso, só iria jantar depois da rendição. Jantar é uma forma de dizer... O arroz já estava feito em cimento e comi, à boa maneira portuguesa, uns peixinhos fritos com pão e umas cervejas."Foram dadas instruções aos "patrões" das LDM para seguirem em direcção a Cacine pelo canal do Melo, um pequeno braço de rio que liga os Cumbijã e Cacine, curto e seguro mas não navegável pelas embarcações maiores.
A Orion seguiu rio acima e embarcou os "paras" no local combinado. Foi uma operação morosa pois não havia nenhum ponto para acostar. Os soldados foram transportados em botes depois de montada uma linha de segurança.
Seriam umas oito da manhã de 2 de Junho quando a Orion chegou ao largo de Cacine. Foi a essa hora que também chegaram as notícias dos acontecimentos que tinham estado na origem daquela missão.Spínola proíbe auxílio a "cobardes"
O major Pessoa, do batalhão de paraquedistas que se encontrava em Cacine, subiu a bordo da Orion e explicou o que se estava a passar: a guarnição de Guileje, um quartel situado numa zona próxima da fronteira com a Guiné-Conakri, tinha sido alvo de ataques fortíssimos e o comandante da unidade, coronel Coutinho e Lima, sem reforços, sem apoio de tropas especiais, sem meios de evacuação de feridos e mortos, decidira retirar do quartel e evacuar todo o pessoal para Gadamael. Foi imediatamente preso e enviado para Bissau às ordens de Spínola. Gadamael estava agora debaixo de fogo intenso e de alta precisão.
O retrato da situação em Gadamael feito pelo major Pessoa era caótico. "As últimas informações indicavam que de um conjunto de efectivos de quase três companhias, só se encontravam no quartel a defender aquela posição cerca de 30 homens. Os restantes e a população encontravam-se em fuga pelas margens do rio", recorda Pedro Lauret.
A reacção de Spínola à deserção anunciava-se tremenda. O major Pessoa informou então os comandantes do Orion que tinha estado de manhã em Cacine e Gadamael por brevíssimos instantes e tinha proibido o socorro a quaisquer militares em fuga, considerando-os "uns cobardes"."Vou buscá-los nem que seja de canoa"
Apesar das ordens de Spínola, a disposição do major Pessoa era outra. "Informou-nos da urgência de ir socorrer esse pessoal devido ao elevadíssimo risco em que se encontrava. Frisou-nos que se não estivéssemos dispostos a ir contra a determinação do general ele próprio tentaria recuperar os militares, nem que fosse em canoas", afirma Lauret.
A determinação do major Pessoa, que volvidos trinta e dois anos não quer falar sobre os acontecimentos de Gadamael, percorreu todo o navio. O Orion partiu de imediato em auxílio dos tropas fugitivos e nada comunicou ao Comando da Defesa Marítima. Avançaram as LDM porque havia muitos anos que as LFG não subiam o Cacine para lá da marca da Lira, um sinal com reflector instalado no rio e já próximo de Gadamael. A verdade é que não eram conhecidas as "condições de fundo" para lá dessa marca, mas o navio aproximou-se do quartel o mais possível, sem problemas.
Do ponto onde estava a Orion podia avistar-se uma antena de grandes dimensões e era um evidente sinal da proximidade do inimigo que punha também a Orion na linha de fogo. De imediato foram desembarcados os paraquedistas nos zebros e as LDM começaram a percorrer as margens a recuperar os soldados que andavam perdidos.
"À noite, a coberta das praças estava repleta de feridos"
Havia feridos e mortos. Desaparecidos e enlouquecidos. No convés foi instalado o mais improvisado dos hospitais para assistir aos feridos ligeiros. Os que tinham ferimentos mais graves foram colocados na coberta dos "praças". Dentro do possível foi servido pão acabado de cozer e cerveja gelada.
Lá fora, nas águas do rio, os zebros percorriam incessantemente as margens enquanto as LDM começavam a fazer uma "ponte marítima" em direcção a Cacine para levar os sobreviventes para um lugar mais seguro e os feridos para uma assistência mais eficaz.
"Penso que teremos recuperado cerca de 300 a 400 pessoas, entre militares e população", diz Pedro Lauret, evocando uma imagem que nunca mais o abandonou: "À noite, a coberta das praças estava completamente repleta de feridos, não havendo lugar para as praças se deitarem".O relato do grumete Ulisses Faria Pereira é feito de rajada, como se quisesse deitar qualquer coisa cá para fora. De resto, este foi um episódio silenciado ao longo de 32 anos. "Ao longo da manhã foi recebido a bordo um número elevado de feridos, a quem eram prestados os primeiros socorros, administrados pelo enfermeiro Abrantes, auxiliados pelo "moço da botica", que por sinal era eu... e que, posteriormente, eram enviados para terra, para terem uma assistência melhor e proceder à sua evacuação via aérea para o hospital de Bissau", diz.
G 3 ficaram abandonadas a bordo do Orion
Nessa noite de 2 de Junho de 1973 o cenário não podia ser pior. A maré baixa criou uma massa de lodo que dificultava o desembarque dos feridos. Dentro do barco estavam esgotadas todas as reservas de soro, compressas, desinfectantes. Foi então enviada uma mensagem para Bissau pedindo reabastecimento mas temendo o pior face ao conhecimento que havia das ordens de Spínola. Na manhã seguinte, porém, um avião da Marinha largava em Cacine tudo o que tinha sido pedido.
O trabalho da Orion continuou nos dias seguintes, fazendo evacuações e começando a retirar do teatro de guerra os paraquedistas feridos. A bordo jaziam a um canto dezenas de espingardas G3: o princípio de nunca abandonar a própria arma já não tinha qualquer sentido. O moral daquela tropa estava abaixo de zero.
Para a história fica o silêncio da hierarquia. Nunca o Comando da Defesa Marítima da Guiné se referiu à desobediência do Orion, do seu comando e tripulação, nem estes sofreram qualquer punição. Na memória ficaram imagens que os protagonistas ainda hoje retêm: em Cacine, por aqueles dias, vivia um Exército enlouquecido, desarticulado, abandonado pela hierarquia, a deambular por entre os seus mortos.
O diário que nunca existiu
O soldado Ulisses Faria Pereira, grumete electricista, moço da botica no navio Orion e ex-seminarista, tinha a "mania da escrita". Todos os dias escrevinhava umas notas sobre a sua comissão militar. Todavia, nunca organizou as suas notas num diário e acabou por perdê-las. Mas se o tivesse feito ele começaria por rezar assim:
"Maio de 1973
Já passaram 12 meses e a comissão decorre com toda a normalidade apesar de notar, conversa aqui, conversa ali, que a situação militar está a degradar-se. A nossa rotina é feita dos habituais "cruzeiros" pelo Cacheu. O Cacheu merece redobrada atenção. É muito estreito, tem muitas clareiras e o navio torna-se um alvo fácil. A navegação do nosso barco é feita com a guarnição em "bordadas", ou seja, através de equipas constituídas por metade do pessoal que cumpre um turno de seis horas comandada por um oficial e um sargento. A outra metade descansa.Frequentemente fazemos a navegação em posto de combate devido a informações sobre a actividade do inimigo. E varremos as margens a tiro. Seis homens são destinados às peças de artilharia antiaérea, duas "Bofors" de 40 mm, uma a ré e outra avante. Nas missões de patrulhamento, quer de dia quer de noite, são colocadas na ponte, tanto a bombordo como a estibordo duas MG42. Na ponte há ainda um morteiro manobrado por um fuzileiro. Pois foi num destes "cruzeiros", há dias, que já vimos como é má a situação.
A Norte, o PAIGC atacou Guidage e pela primeira vez se sussurrou entre as tropas que usaram mísseis. E também que foi abatido um avião a hélice num dia e um helicóptero no dia seguinte. Nós estávamos aí perto. A tensão foi enorme. Batíamos o rio a toda a hora, noite e dia. À noite em ocultação de luzes. Chegaram, depois, notícias do sul também muito más. Guidage, Guilege e Gadamael começaram a ser os nomes da morte entre a tropa. O que mais depressa chega aos ouvidos dos soldados é a dificuldade de evacuação de feridos. Recebemos então a missão de embarcar uma companhia de paraquedistas na zona de Bolama e deslocá-los para Gadamael com o objectivo de prestar auxílio às unidades que flageladas pelo inimigo.
Percebemos logo que aquela não iria ser mais uma missão de rotina quando soubemos da possibilidade de o massacre ser de tal ordem que havia militares a fugir para as bolanhas em redor de Gadamael. Após o embarque, as forças especiais foram-se acomodando no convés. Apagámos as luzes e fizemos rumo para Cacine.
Ao longo das primeiras horas da manhã foram recebidas a bordo dezenas de homens feridos. Nestes dias, o Orion funcionou não como lancha de fiscalização mas como um navio hospital, de primeira linha, mas sem médico e apenas com um enfermeiro e um "curioso" que era eu."
Trinta e um anos depois sobram as memórias de uns tempos de chumbo mas também de uma experiência decisiva na vida de Ulisses, natural de Alboritel, concelho de Ourém, há muito instalado em Almada onde é funcionário da inspecção tributária. Hoje até é capaz de se rir quando se lembra dos truques que a sua imaginação criou para não ser incorporado para a Guiné – como responder tudo mal nos testes do curso da Marinha – e de como o tiro lhe saiu pela culatra. Logo a ele que ficou com a especialidade de electricista sem que tivesse qualquer vocação para tratar de fusíveis e tomadas. Foi excluído do curso mas acabou incorporado no navio S. Roque, embarcação dos mergulhadores da Marinha. Daí até à Guiné foi o tempo de um fósforo a arder. Quando pôs o pé em Bissau era um recruta em prontidão para combater sem que alguma vez tivesse tido contacto sério com armas de fogo...
Jorge Amado e Gorki no navio que atacou Conakri
Quando Pedro Lauret, então um jovem guarda-marinha de 22 anos, chegou ao Orion, em Setembro de 1971, ainda por ali pairava a memória fresca de uma operação secreta. O navio tinha comandado a incursão militar contra a Guiné-Conakri sob a mão de ferro do comandante Alpoim Calvão, na mais polémica acção de guerra da campanha colonial portuguesa. Nos porões ainda havia umas boas caixas de champanhe francês e de whisky velho.
O ambiente a bordo era, por assim dizer, "agressivo", no sentido em que era profundamente marcado pela lógica pura da guerra. "Foi minha primeira preocupação modificar o ambiente e, dentro das limitações de quem vive em teatro de operações, criar dinâmicas antifascistas e anticoloniais", recorda aquele que em breve seria imediato.
Na bagagem Lauret levava uma formação política na linha das actividades conspirativas de sectores da Marinha contra o regime. Desde 1968 que se organizavam na Marinha movimentos com finalidades políticas e que estavam centrados nas actividades associativas, culturais e técnico-profissinais do Clube Militar Naval. Um desses movimentos foi o que pretendia instituir um curso de natureza associativa e sindical que acabou proibido por despacho governamental em 1972. Outro, mais importante, foi o que fomentou clandestinamente uma plataforma política contra o regime e a guerra. Havia debates sobre o marxismo e o estruturalismo com convidados como Maria Lamas e Augusto Abelaira.
Eram dinamizadas actividades culturais nas unidades, como jornais de bordo, bibliotecas e convívios desportivos. Foram ainda criadas "comissões de bem-estar", órgãos previstos na Ordenança do Serviço Naval e que juntavam na mesma unidade oficiais, sargentos e praças, servindo de conselho do comandante em vários domínios da vida nas embarcações.Uma das estratégias de aproximação entre oficiais e praças assentava em actividades lectivas para estes. Assim, foram criadas em algumas unidades pequenos núcleos escolares adquirindo maior importância os que se constituíram no próprio Ministério da Marinha e numa colectividade recreativa da Cova da Piedade.
Pedro Lauret, enquanto jovem cadete, relacionou-se mais com este mundo clandestino o que teve uma influência decisiva na sua formação política. Quando chega ao Orion leva já no espírito esta necessidade de trabalhar para tentar mudar alguma coisa no rumo que a presença militar portuguesa em África levava.
Numa curta passagem por Lisboa, em licença, recebe no aeroporto uma biblioteca de bordo. A entrega é feita pelo seu "filho da Escola", mais tarde comandante Cambraia Duarte, a quem pedira para que lhe comprasse os livros. Os títulos são sugestivos quanto aos objectivos: "Os subterrâneos da Liberdade", "A Mãe", de Gorki, e "Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes.Começam, assim, as leituras a bordo do Orion e também as aulas a alguns praças, que terminaram com sucesso exames do 2ºano do liceu. "Aos poucos o ambiente foi-se tornando muito diferente do que encontrara. Era um equilíbrio difícil para quem tem de manter a sua unidade em muito elevada prontidão para combate mas contei com apoio total do meu comandante de então, Coelho Rita,", declara Pedro Lauret. Em sua opinião, aliás, a mudança de ambiente no navio acabou mesmo por ser um factor decisivo para a tripulação viesse a ter a capacidade moral para desobedecer às ordens do Comandante-chefe, Spínola, quando o que estava em causa era tão só a solidariedade com aquilo a que chama "o povo português fardado".
Histórias reais recordadas 32 anos depois
O soldado da Madeira que só morreu em Bissau
"Recordo um soldado da ilha da Madeira que foi recolhido na bolanha e o seu estado de saúde era tão grave, o seu corpo estava tão cravado de estilhaços, que eu só conseguia ir tirando um a um da cara com uma pinça. Estava sujo de lama e o enfermeiro teve a ideia de o meter debaixo do chuveiro. Quando lhe tirava as calças, porém, é que verificou que lhe faltava parte da perna e da anca devido à deflagração de uma granada. O pobre soldado estava completamente sem sentidos, talvez, quem sabe, em estado de pré-coma. O éter utilizado na sua lavagem criou uma atmosfera tão inflamável que um dos camaradas nossos ao entrar na coberta a fumar deixou cair um pouco de cinza no balde onde depositávamos as compressas e o algodão, provocando uma explosão na coberta. O gerador foi abaixo criando uma situação de pânico. Nesse momento o soldado da Madeira levantou-se e tentou procurar um abrigo. Mais tarde, saiu do navio vivo, foi transportado para Cacine, acabando por morrer em Bissau... por falta de assistência, dizia-se por lá."Uma bala por cima do coração
"Para a noite estava reservado um dos episódios mais dramáticos. Deu entrada a bordo um guineense, guia das nossas tropas, que tinha uma bala alojada acima do coração. Este homem pesaria entre 110 a 120 quilos. Foi-lhe administrado o último balão de soro e o seu estado de saúde era muito preocupante. O comando entendeu evacuar o homem para que este não morresse a bordo. Para o retirar da coberta – o acesso era feito através de uma escotilha – foram necessários oito homens que o colocaram numa das lanchas. Esta embarcação navegou o que pôde no sentido das luzes do quartel mas depois foi necessário voltar a colocá-lo num zebro por causa da maré baixa. O zebro dirigiu-se a terra mas a partir de certa altura já não era possível navegar. O homem foi então transportado em maca por quatro elementos da tripulação, o cozinheiro, um artilheiro, o escriturário e o electricista, ou seja eu. O enfermeiro segurava o balão de soro. Quando saltámos do bote ficámos com água pela cintura mas o fundo parecia não ser muito mole. Todavia, quando retirámos a maca do bote, com o peso do ferido, pura e simplesmente não nos conseguimos mexer dali. Por duas horas travámos uma luta com um campo de lodo, afundados quase até ao pescoço e com a maré a subir. Por fim, o enfermeiro, já exausto, larga o balão de soro em cima do ferido e nada para terra, junto ao quartel. O escriturário quase já não se via na água. Só ao fim de três horas foi possível passar um cabo a partir de terra e puxar a maca e os homens que a tinham transportado.
Quando chegámos já não havia lugar para depositar os mortos
"Quando chegámos a terra exaustos o cenário era de dor. Chorava-se, gritava-se, havia ataques de histerismo entre os soldados que ali se encontravam refugiados, aguardando a chegada dos companheiros que estavam perdidos nas bolanhas e que tinham sido recolhidos por nós. Chegados a terra o cheiro era nauseabundo uma vez que já não havia sítio para depositar os mortos. O destino era a capela e aí aguardavam urna. Os primeiros tinham sido ali colocados já havia cinco dias. Só regressámos ao Orion passadas umas horas. No convés do navio misturavam-se soldados e população também resgatada. A guarnição não se conseguia movimentar. Um verdadeiro inferno. Mais tarde, sei que quando embarquei no aeroporto de Bissalanca de regresso a Lisboa trazia na mala a convicção de que não mais iria regressar aquela terra. Que iria fazer como muitos outros e fugir para França. Passados trinta dias, não consegui."
Ninguém entregou a condecoração ao coronel
Eduardo Dâmaso
O coronel Ferreira da Silva resistiu com um punhado de homens ao avanço do PAIGC sobre Gadamael. Sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e com poucas munições. Foram louvados e o coronel chegou mesmo a ser condecorado por Carlos Fabião. Mas nunca recebeu a Cruz de Guerra.
Foi ao pôr do sol do dia 1 de Junho de 1973 que os três ou quatro soldados que sobravam da tropa comandada pelo recém-chegado capitão dos comandos Ferreira da Silva ficaram sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e sem munições de morteiro ali por perto. Foi nesse dia que o hoje coronel reformado e advogado Ferreira da Silva conquistou uma das suas mais vivas memórias da guerra colonial e também uma condecoração, a Cruz de Guerra, que nunca chegou a receber.
Ferreira da Silva, que antes tinha estado em Angola, acabara de poisar em Gadamael no dia 31 de Maio depois de uma nomeação relâmpago para a chefia do Comando Operacional 5 (COP5). Iniciara a comissão na Guiné em Dezembro de 1971, nos Comandos Africanos, e alguns meses depois foi ferido com gravidade. Evacuado para Lisboa, onde convalesceu, regressou à Guiné a seu pedido em Janeiro de 1973 e foi colocado em Bolama a comandar uma companhia de instrução.
A 31 de Maio, pelo meio-dia, chega ao quartel de Gadamael que vivia sob as brasas do episódio da retirada do capitão Coutinho e Lima do quartel de Guileje, situado a cerca de oito quilómetros do primeiro. Ferreira da Silva só teve tempo para um breve contacto com os dois comandantes de companhia ali presentes. Por volta das 15.00 começaram as flagelações com mísseis, morteiros e canhões sem recuo. Nesse dia houve um morto e um ferido.

Chuva de 18 granadas de três em três minutos
Pelo amanhecer do dia 1de Junho começou o mais crítico de todos os dias da batalha de Gadamael. As granadas dos morteiros 120 eram disparadas a um ritmo de 18 de três em três minutos. Logo pelas dez da manhã uma granada acabou com o pelotão de artilharia. Três mortos e 11 feridos deixaram o pelotão inoperacional. Gadamael fica reduzido ao morteiro 81 que não tinha alcance suficiente. Momentos antes tinha aterrado no quartel um helicóptero que transportava o general Spínola mas este teve de ser empurrado para dentro do aparelho, que levantou voo de imediato. O silvo das granadas a sair foi ouvido no quartel e os rebentamentos ocorreram no ponto de aterragem do helicóptero.
Num quartel com poucos abrigos e um elevado número de militares ali concentrados os mortos e feridos foram aumentando. Na contabilidade feita ao final do dia eram registados 8 mortos e 27 feridos.Aos poucos foram tentando fazer evacuações de feridos por barco mas o fogo intenso de cada vez que se dirigiam ao cais dificultava muito a acção. Ao princípio da tarde uma granada destruiu o posto de rádio e feriu os dois comandantes de companhia. "Após a evacuação dos capitães fiquei sem elementos de ligação pois não conhecia ninguém em virtude de ter chegado na véspera", afirma Ferreira da Silva.
Num cenário de desespero e com poucos abrigos os soldados começaram a andar junto às valas de defesa até à aldeia que ficava próxima e não estava a ser atacada. Ferreira da Silva, atarefado com as evacuações só quando o furriel Carvalho, do morteiro 81, lhe foi dizer que já não tinha granadas e que só se encontravam três ou quatro militares na zona crítica é que se apercebeu que a defesa do quartel estava a reduzida a um punhado de homens.
A bravura do cabo Raposo
Quem deu algum ânimo aos poucos que estavam foi desde logo o 1ºcabo escriturário Raposo, açoriano, que se voluntariou para fazer o arriscadíssimo trajecto até ao paiol. Enfiou-se numa Berliet e foi buscar munições debaixo de fogo intenso. Gadamael estava cercado, sem artilharia, sem apoio aéreo, sem capitães, sem médico, sem rádio, sem munições de morteiro 81, tinha por companhia apenas três ou quatro militares na linha da frente.
A bravura do cabo Raposo e do furriel Carvalho, porém, foi um encorajamento para todos. Com o morteiro 81 municiado pelas granadas trazidas na Berliet, com uma metralhadora que conseguiram montar e os tais três ou quatro militares passaram o resto da noite de 1 para 2 de Junho a lançar umas morteiradas e umas rajadas de metralhadora de tempos a tempos. Só no dia 2 de Junho é que se apercebeu que uma parte significativa dos militares que tinha fugido para a tabanca se tinha deslocado com a população para junto do rio Cacine.
Nos dias seguintes a situação melhorou mas só num dia houve seis mortos entre os paraquedistas que entretanto tinham chegado. O comando foi assumido pelo oficial Manuel Monge, antigo chefe da Casa Militar de Mário Soares e hoje governador civil de Beja. Ferreira da Silva passou a adjunto de Monge, oficial mais graduado. "A 31 anos de distância saliento a acção dos paraquedistas, do furriel Carvalho e do cabo Raposo, do major Monge com quem partilhei, durante meses, aqueles momentos difíceis, mas que conseguimos ultrapassar", recorda o coronel que nunca recebeu a Cruz de Guerra.

terça-feira, fevereiro 14, 2006

AFRICA E OS DESAFIOS DA CIDADANIA E INCLUSÃO:

AFRICA E OS DESAFIOS DA CIDADANIA E INCLUSÃO:
> >O LEGADO DE MÁRIO DE ANDRADE
> >
> Palestra Cheikh Anta Diop, por Carlos Lopes (Assembleia Geral do
> >Codesria, Maputo, Dez 2005)
> >
> >Para muitos aqui presentes o nome de Mário de Andrade não despertará
> >imediatamente a atenção. Para outros relembrará, no entanto, uma
> >memória importante.
> >
> >Imaginemos o jovem que em 1954, corrigia, em Paris, as provas de um
> >livro que serviria de referência para os intelectuais africanos: "
> >Nations Nègres et Culture", de Cheikh Anta Diop. O mestre acabara a
> >sua obra prima mas estava doente e precisava de ajuda. O mais jovem
> >aprendia com esse trabalho um pouco mais das suas funções de artesão
> >das letras. O seu espírito inquieto já lhe tinha trazido alguns
> >dissabores com o seu chefe e patrão, o outro Diop. Trata-se de
> >Alioune Diop, criador da revista Présence Africaine, que a História
> >ilustre daqueles anos registou como uma contribuição fundamental, na
> >afirmação de uma identidade política em formação.
> >
> >Nada tinha, à priori, predestinado esse jovem angolano a se tornar o
> >chefe de redação de uma revista em francês, e ter a capacidade de
> >poder inclusivé corrigir as provas de Anta Diop. Bem, na realidade,
> >os seus anteriores estudos de linguística brindaram-lhe uma
> >disciplina etimológica e sintáxica que jamais descurou. Tornou-se
> >desde muito cedo no maior amigo do dicionário, o pai dos espertos,
> >como gostava de brincar. Mas na Présence Africaine começou apenas
> >como secretário particular daquele que admirava, e que pouco dinheiro
> >tinha para lhe pagar.
> >
> >Logo falaremos dos contornos de vida que levaram Mário de Andrade,
> >pois é dele que se trata, a ter esse e muitos outros encontros com a
> >História. Como eterno dissidente era natural que se tornasse em
> >eterno exilado. E foi nesse caminhar de lugar para lugar que acabou
> >cruzando a Bissau pós-independente dos anos 70. Aí tive o privilégio
> >de o conhecer, com ele trabalhar, para depois, assumidamente, me
> >considerar seu discípulo. Deixou-nos há 15 anos atrás.
> >
> >Ao ser convidado para proferir esta palestra ocorreu-me imediatamente
> >a ideia de me conectar a Anta Diop através do fio condutor geracional
> >que me leva a Mário de Andrade. Provavelmente também porque ao fazer
> >uma releitura do legado deste último, chegaremos às propostas do
> >primeiro, suas limitações, e à necessidade de contextualizar ambos
> >nos debates que nos sacodem hoje.
> >
> >Não tenhamos ilusões: os intelectuais africanos estão divididos, suas
> >propostas têm crédito reduzido, suas respostas são tentativas, o seu
> >papel ainda muito desprezado, e sua influência, por consequênçia,
> >bastante limitada. É minha convição que o exemplo de Mário de Andrade
> >é significativo, nomeadamente para nós do espaço lusófono, para
> >entender os actuais desafios dos intelectuais africanos.
> >
> >Vou dividir esta palestra em quatro partes: começarei por apresentar
> >sucintamente o tempo de Mário de Andrade e a geração que o precedeu,
> >e que ele mesmo designou de proto-nacionalista; depois virá uma visão
> >crítica do nacionalismo africano e as suas propostas revolucionárias;
> >em seguida as conquistas, mas também as derivas da negritude e do
> >pan-africanismo; isso permitirá depois analisar as consequências para
> >a cidadania, inclusão e respeito de identidades; e, finalmente,
> >terminar com a interrogação sobre o que tudo isto representa para os
> >intelectuais africanos.
> >
> >1. COMO TUDO COMEÇOU
> >
> >Mário Coelho Pinto de Andrade nasceu no Golungo Alto, na provínvia do
> >Kwanza Norte, em 21 de Agosto de 1928. O seu pai, José Cristino Pinto
> >de Andrade, funcionário bancário, foi um dos fundadores da Liga
> >Africana. Sua mãe, era descendente, mas um pouco abandonada, de uma
> >família de fazendeiros. Mário de Andrade viveu entre pais separados e
> >famílias com várias ramificações, à boa maneira africana. A formação
> >da sua personalidade foi marcada pela vivência rural oferecida pela
> >família de sua mãe, com quem ficou um tempo, mas mais intensamente
> >pelo ingresso no Seminario Católico de Luanda, onde estudou com seu
> >irmão Joaquim, o ex-Cardeal de Luanda D.
> >Alexandre do Nascimento, e outras grandes figuras do nacionalismo
> >angolano.
> >
> >Ao descrever a Luanda dos anos 30 Mário de Andrade, no seu título
> >postumo "As Origens do Nacionalismo", fala-nos de uma míriade de
> >instituições, jornais e processos, que se desenvolveram
> >simultâneamente nas várias colonias portuguesas de Africa. As
> >referências ao resto do continente e ao Brasil estão obviamente
> >presentes, mas não de maneira marcante. Estes movimentos são apegados
> >à valorização dos filhos da terra, em oposição aos que dela não se
> >interessam. Os seus membros quase sempre se revoltam pela falta de
> >atenção das autoridades, o desleixo burocrático e as injustiças no
> >tratamento dos conhecimentos locais, em relação aos que chegam da
> >metrópole.
> >
> >Sem querer detalhar a complicada, embora fascinante, evolução destes
> >movimentos, também chamados de nativos, ou nativistas, a verdade é
> >que eles congregam cada vez mais reinvidicações de caracter político.
> >Essa vertente acabará por determinar o seu futuro: a luta por
> >direitos e, nessa luta, a defesa da cidadania plena.
> >
> >Mas tratava-se de facto de uma cidadania plena, como podemos conceber
> >hoje? Não. Os proto-nacionalistas, como os baptizou Mário de Andrade,
> >eram cheios de contradições e pensavam que os valôres da terra
> >estavam associados à sua capacidade de os protagonizar, ou seja,
> >eles, letrados ou portadores de cultura e saber, no sentido lato
> >desses termos, deveriam ter direitos iguais aos outros cidadãos
> >portugueses. Mas aí parava a reinvidicação.
> >
> >Influenciada pela forma como o Brasil se tornou independente a elite
> >portuguesa distanciou-se um pouco de suas congéneres coloniais
> >europeias, na legitimação de sua ação colonizadora. Em todo o período
> >republicano português sempre existiu alguma forma de representação
> >das colonias nos poderes legislativos centrais, porquanto isso fosse
> >absolutamente não democrático, como justificação para uma ideologia
> >centralizadora: uma só nação, dividida por vários territórios. Assim
> >regia o velho sonho do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, que
> >involuntariamente se transformou em teórico da excepção portuguesa.
> >Ele acreditava que 'o mundo que o português criou' era mais cordial,
> >simpatico e menos dado a uma dominação absoluta e racista. Na
> >realidade esse mundo era mais perverso e se defendia com argumentos
> >diferentes por nunca ter tido a força de dominar economicamente o que
> >detinha, e por essa razão, defensiva, ter-se transformado no mais
> >centralizador dos impérios. Centro fraco, sim, mas com ideologia
> >diferente.
> >
> >Não deixa de ser verdade que os portugueses criaram arquipelagos de
> >relações sociais perversas, e crioulizaram até os movimentos, que
> >depois dariam origem a luta anti-colonial. Ela começa com os
> >proto-nacionalistas. Negros na sua maioria, mas também mestiços e até
> >alguns brancos nativos co-optados para a causa.
> >
> >O processo de urbanização dos anos 30 em Luanda favoreceu o
> >florescimento de bairros típicos, como as Ingombotas, que para além
> >do Km 5, como aludia Mário de Andrade, congregava famílias como a
> >dele próprio, mas também as de Bento Ribeiro, Viana, Mingas, Vieira
> >Dias e Van-Dunem; nomes que qualquer aprendiz da política angolana
> >reconhece. Mário de Andrade não era um membro qualquer dessa
> >comunidade já que muito jovem foi recrutado como professor de latim e
> >português em vários colegios da cidade. Para um negro sem formação
> >universitária isto era um autêntico fenómeno. Ele chegou a ser
> >Professor de gente hoje famosa como Carlos Ervedosa ou Uanhenga Xitu.
> >Seu irmão, que depois seria enviado para a Universidade Gregoriana de
> >Roma, também foi docente, e depois já como padre, Chanceler da
> >Arquidiocese de Luanda; até ser preso em 1960 pelas autoridades
> >portuguesas, durante 14 anos. Nesse interim foi Presidente honorário
> >do MPLA, eleito em 1962. Estamos pois em presença de duas grandes
> >figuras da mesma família que muito influenciaram os rumos da
> >discussão política de Angola.
> >
> >A geração de seu pai, que Mário de Andrade pejorativamente
> >classificava de lumpen-aristocracia, "eram assimilados, eram homens
> >que acreditavam serem verdadeiramente os defensores dos valôres
> >antigos" (Andrade, 1997a, 35). Mas liam os autores brasileiros, bem
> >como Gogol e Gorsky, e muitos eram os divulgadores de "A voz de
> >Angola clamando no deserto", um texto ensaístico de 1901, que servia
> >de referência para a construção de uma identidade de luta.
> >
> >Poucos negros tinham a possibilidade de estudar, já que as regras
> >apertadas da política de assimilação, coabitavam com alguns negros em
> >lugares de destaque, mas apenas os que conseguiam furar a malha da
> >descriminação burocrática. A descriminação social, essa era toda uma
> >outra realidade. Mesmo assim os priviligeados que se destacavam iam
> >para Lisboa. Para lá conseguiu rumar, com dificuldades, Mário de
> >Andrade, em 1948. Na bagagem levava algumas promessas, como a que
> >fez ao seu amigo de tertúlia literária Viriato da Cruz, de que
> >ficaria sempre sintonizado com a terra. Viriato da Cruz viria a criar
> >uma série de movimentos de caracter comunista, fez parte do núcleo
> >fundador do MPLA, e morreu no exílio na China.
> >
> >Mário de Andrade ficará em Lisboa apenas cinco anos, mas parecerão
> >muitos mais para qualquer historiador contemporâneo. É neste período
> >que a agitação da Casa dos Estudantes do Império vai desembocar na
> >criação do Centro de Estudos Africanos, na publicação de várias obras
> >de ensaio e poesia de exaltação da africanidade e negritude, e a
> >maturação das ideias que depois darão origem aos movimentos
> >nacionalistas mais radicais das colonias portuguesas. O expoente
> >deste processo é, sem dúvida, Amílcar Cabral, cujo nome afectivamente
> >Mário de Andrade associa a toda a sua geração: a Geração de Cabral.
> >Mas o agente cultural é Mário de Andrade.
> >
> >Nas palavras dos própios eles começaram a 'reafricanizar os seus
> >espíritos', a entender que os negros tinham mais do que direitos,
> >tinham direito à sua própria independência. A sua dignidade passava
> >pela sua auto-determinação. As leituras e circulação de ideias
> >marxistas davam uma base sólida para poder conceber uma nova forma de
> >luta, unitária, capaz de entender a complexidade da realidade
> >colonial. A força desses movimentos virá do seu caracter unitário, e
> >esse caracter reforça-se na base da concepção colectiva da Africa e
> >das lutas nacionais.
> >
> >Esses movimentos não experimentam qualquer contradição entre a defesa
> >do negro e sua dimensão profundamente humanista e inclusiva.
> >Os seus primeiros apoios vem do Marrocos, da Argélia, da Tunísia de
> >Bourghiba, um dos grandes contribuintes do nacionalismo, do Egipto de
> >Nasser. O papel posterior de Ben Bella e de Fanon será magnético.
> >Em menor escala são influenciados pelos nacionalistas de outras
> >paragens, mas mitificam a Independência dos etíopes e são entusiastas
> >do processo de criação da OUA.
> >
> >Mas, sem margem para dúvida, são os intelectuais e a diaspora que
> >servem primeiro de luz. Eles mesmos sendo da diaspora não poderia ser
> >de outra forma. Para tanto a deslocação de Mário de Andrade para
> >Paris é decisiva. As grandes influências literárias em Lisboa são
> >Nicolas Guillén, Alan Patton, Leopold Sedar Senghor, Aimé Cesaire,
> >Roy Albridge, Countee Cullem, Langston Hughes e os brasileiros Lins
> >do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos. O bibliotecário do grupo, vai
> >alargar os horizontes a partir de Paris. Mário de Andrade trava
> >conhecimento directo, entre outros, com Ferdinand Oyono, Richard
> >Wright, René Maran, Eza Boto, Bernard Dadié, Ray Autra, Albert Camus,
> >Jean-Paul Sartre, René Depestre, para além dos seus professores
> >Georges Gurvitch, Georges Balandier e Roger Bastide, os pais da
> >sociologia moderna Francesa.
> >
> >Nesse leque enriquecedor vão também entrar William Dubois, para além
> >de Cesaire, Senghor, Anta Diop e tantos outros que participaram nos
> >Congressos Pan-africanistas, e de escritores e artistas negros,
> >alguns dos quais Mário de Andrade ajudou a organizar, entre Londres,
> >Paris e Roma. É durante esse período que começam a surgir as
> >primeiras contradições na interpretação pan-africana, polarizadas à
> >volta de Dubois e Marcus Garvey, um americano e outro jamaicano.
> >Segundo Andrade "ressente-se a convergência conceptual na visão
> >utópica da Africa. Fundamentado na convição teórica de uma
> >superioridade dos Afro-Americanos (Black American ou
> >African-American), adquirida ao longo do processo da escravatura,
> >Marcus Garvey 'an extraordinary leader of men', nos própios termos de
> >Dubois, vislumbrava a organização de um esforço de construção do
> >continente a partir da Libéria, espaço de realização económica e
> >financeira de um modelo de sociedade forjada nos Estados Unidos da
> >América, conforme o paradigma civilizacional do Ocidente" (Andrade,
> >1997b, 161).
> >
> >Esses anos 50 e 60 são os das lutas independentistas do continente.
> >O FLN argelino, Kwame Nkrumah e Sekou Touré criam as bases para
> >albergar os nacionalistas de todos os quadrantes. Essa ajuda vai ser
> >bem utilizada pelos nacionalistas das colonias portuguesas. Não é
> >pois de admirar que Mário de Andrade comece cada vez mais a
> >frequentar Argel, Casablanca, Accra, para eventualmente mudar para
> >Conakry em 1960, o ano das Independências africanas. Várias razões
> >militaram para essa escolha; mas a mais importante é a presença de
> >Amílcar Cabral, que tinha assumido a liderença da Frente
> >Revolucionária Africana para a Independência, que depois cedeu o
> >lugar, em 1961, à Conferência das Organizações Nacionalistas das
> >Colonias Portuguesas, que Mário de Andrade dirige de facto, na sua
> >qualidade de Secretário Geral.
> >
> >Antes de se instalar em Conakry Amílcar Cabral havia criado o Partido
> >Africano para Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), e
> >contribuído para unificar vários movimentos nacionalistas angolanos
> >que darão origem ao MPLA, no ano charneira de 1956. O primeiro
> >Comité Director do MPLA é estabelecido em 1960, sendo Mário de
> >Andrade escolhido como primeiro Presidente. Ele depressa cederá o
> >lugar a Agostinho Neto, em 1962, por razões que já explicarei.
> >
> >Mário de Andrade, dirige a CONCP, retorna às lides intelectuais onde
> >navegava com facilidade e serve de ponte externa aos vários
> >movimentos. No início dos anos 70 chega a participar, em condicões
> >dramáticas, na frente leste da luta armada. Mas quando em 1974, nas
> >vesperas da independência se posiciona contra a ala dita
> >presidencialista, de Agostinho Neto, é como outros dirigentes,
> >incluindo seu irmão Joaquim, empurrado para uma dissidência, que fica
> >conhecida como a da 'Revolta Activa'.
> >
> >A 11 de Novembro de 1975 Angola torna-se independente, debaixo do
> >fogo de uma guerra civil que durará mais 30 anos. Mas antes que Mário
> >de Andrade possa se quer participar das escolhas do país para o qual
> >foi um lutador incansavel, já acusado de fracionismo e refugia-se na
> >Guiné Bissau. O então Presidente, Luís Cabral, irmão de Amílcar,
> >acolhe-o como biógrafo do heroi guineense e caboverdiano, e depois
> >nomeia-o Presidente do Conselho Nacional de Cultura, e mais tarde
> >Ministro da Informação e Cultura. Por lá ficará Mário de Andrade, com
> >actividade cultural frenética, até ao primeiro golpe de Estado da
> >Guiné Bissau em Novembro de 1980.
> >
> >Novo exílio e fim de vida num Hospital de Londres dez anos depois. O
> >tempo de ainda escrever obras fundamentais, aprimorar sua
> >contribuição sobre o papel dos intelectuais, antes de ser enterrado
> >com cerimonial de Estado em Luanda, no seu país, onde só regressa no
> >caixão e ... que nunca lhe concedeu um passaporte.
> >
> >2. NACIONALISMO E PENSAMENTO REVOLUCIONÁRIO
> >
> >Seria certamente interessante fazer mais uma incursão analítica sobre
> >o discurso nacionalista africano. O que nos importa, no entanto, é
> >tão somente reflectir sobre em que contexto o pensamento de Mário
> >Andrade sobre Nação e nacionalismo evoluiu, e demonstrar quão actual
> >continuam a ser às suas análises.
> >
> >Mário de Andrade foi primeiro influenciado sobre a necessidade de uma
> >historicidade africana. Na altura o objectivo era refutar a tese
> >hegeliana da ausência de História africana. Esse período, que chamei
> >de pirâmide invertida, tinha em nomes como Joseph Ki-Zerbo, Téophile
> >Obenga e outros, os defensores da demonstração de que a História de
> >Africa era uma antítese do que se tinha dito durante muito tempo.
> >Houve exageros de algumas formulações apressadas e certas analogias e
> >comparações. Com a distância do tempo a profundidade de Cheickh Anta
> >Diop destaca-se.
> >
> >Profundo humanista ele tentou demonstrar que o lugar da contribuição
> >negra para a História Universal era irrefutável, e tinha o seu ponto
> >culminante na civilização egípcia. Ao fazê-lo desenvolveu várias
> >teses, sendo a mais intrigante a relacionada à pigmentação e
> >melanoma, como factores de manipulação do pensamento civilizacional
> >ocidental. Falando da unidade biológica do ser humano Anta Diop dizia
> >que"... le problème est de rééduquer notre perception de l'être
> >humain, pour qu'elle se détache de l'apparence raciale et se polarise
> >sur l'humain débarrassé de toutes coordonnées ethniques."
> >(Diop, 1982, 138).
> >
> >Era natural que Anta Diop define-se a problemática nacional em termos
> >de contraponto à ideia de uma civilização ocidental. Como renomado
> >egiptólogo provou que a realidade da presença negra no composito dos
> >valôres modernos universais era reconhecida até pelos gregos. No
> >contexto da sua época era singular o direito ao contraditório. Era
> >algo que poucos podiam fazer com a qualidade e audiência de Anta
> >Diop. Mas houve exageros. Assim ele reforçou, duvidosamente, a ideia
> >de que a unidade biológica dos humanos só podia ser repartida pela
> >vivência cultural e não civilizacional, já que os fundamentos desta
> >última são contribuição de todos. E, no caso singular do Egipto,
> >sobretudo dos negros. Daí a confundir nação e cultura, contendo esta
> >as tais especificidades de alteridade, era um passo compreensível.
> >Mas na realidade errado, já que o próprio conceito de puridade racial
> >que Anta Diop denunciava com veemência, lhe servia igualmente de
> >fundamento para a diferenciação.
> >
> >Trata-se do debate da época, mas um debate que continua presente no
> >nosso tempo. Como se situava Mário de Andrade nessa discussão?
> >
> >Ao designar de proto-nacionalista a geração de seu pai, Mário de
> >Andrade admitiu que às lutas fragmentadas pela dignidade dos filhos
> >da terra tinham uma vertente que levaria a uma reinvidicação de tipo
> >nacional. Ele mesmo, filho, acabou integrando a geração que luta
> >pelos direito a auto-determinação e independência, e fê-lo com a
> >ideia de que Nação era um instrumento utilitário para unificar lutas
> >fragmentadas. Ou seja era uma invenção social conveniente que ganhou
> >forma com a contribuição dos própios protagonistas. Nada de diferente
> >em relação ao pan-africanismo, outra construção hipotética, inventada
> >pela diaspora militante, que não dispunha de identificacao
> >territorial própria no continente.
> >
> >Construções sociais eram ponto comum nos debates marxistas de então.
> >Com a reinterpretação de desejo nacional oferecida pela Comuna de
> >Paris o nacionalismo passou a ser associado à luta de classes. Kwame
> >Nkrumah entitulou o seu livro principal "Luta de classes em Africa",
> >Fanon desenvolveu a teoria da substituição do caracter revolucionário
> >e nacionalista do proletariado pelos camponeses africanos, e Amílcar
> >Cabral teorizou que o conjunto da população colonizada se
> >transformava em classe nacional.
> >
> >Para completar estes artifícios teóricos faltava a fundamentação
> >histórica que Anta Diop e seus companheiros proporcionavam. Ao
> >inaugurar o primeiro laboratório de carbono 14 na Africa, Anta Diop,
> >simbolicamente, mostrava a capacidade adquirida de datar os factos,
> >uma prova da antiguidade da historicidade em construção, o elemento
> >fundamental do nacionalismo cultural.
> >
> >Se cultura servia de matriz, então ela tinha de ter uma forma
> >marcante de alteridade, em relação aos valôres culturais do
> >colonizador. Quase que automaticamente esta alteridade era encontrada
> >no caracter negro, o elemento excluído da assimilação colonial. Até
> >Fanon, a partir da Argélia, o reconhecia, mostrando que essa
> >reinvidicação da alteridade negra, não era uma luta racial, ainda
> >menos racista.
> >
> >Este nacionalismo encontrava eco na negritude. Mário de Andrade
> >admirou o rompimento de Aimé Césaire deputado, com o Partido
> >Comunista Francês, por este último não ser capaz de integrar a
> >dimensão cultural das colonias na equação sobre a luta de classes.
> >Achou aquela posição mais corajosa do que a de Senghor que via na
> >negritude apenas um elogio da estética negra, complementar senão
> >equiparável à ocidental. Mas as contradições avolumavam-se. Como
> >distinguir lutas anti-coloniais, genuinamente apenas 'do contra', da
> >sofisticada elaboração nacionalista. Ainda por cima era claro que se
> >tratava de um nacionalismo sem Nação, nas várias definições adoptadas
> >na época. Todas à volta da elevação de caracteres comuns como língua,
> >religião, ancestralidade, ou cultura.
> >
> >Com a chegada de vários líderes pan-africanistas ao poder começam a
> >ver-se algumas diferenças entre o nacionalismo dos revolucionários
> >asiáticos e o dos africanos. O movimento que conduzirá ao Maio de 68
> >foi aquecendo os debates da esquerda francesa, muito presente nos
> >debates dos nacionalistas, devido ao papel motor da Argélia na
> >libertação do continente.
> >
> >Mário de Andrade voltava-se, por seu turno, para os ensinamentos de
> >António Gramsci: a complexidade do estudo da realidade, para a sua
> >transformação (como preconizava o princípio do intelectual orgânico).
> >Ele dá-se conta que a dimensão cultural é melhor captada demonstrando
> >que a luta nacionalista é uma forma de dignificação civilizacional. A
> >tese é de Amílcar Cabral: a luta de libertação é uma demonstração de
> >vontade própria e por isso trata-se de um acto de cultura. Por essa
> >mesma razão a luta não pode ser contra os indivíduos mas contra os
> >sistemas. O reforço do caracter humanista é resultado das reticências
> >que ambos, Cabral e Andrade, desenvolvem em relação ao que estão
> >vendo das independências africanas.
> >Sobretudo a deriva autoritária de Nkrumah e Sekou Touré, que eles
> >conhecem mais de perto. Mas também as tendências que eles mesmos
> >observam nos seus própios movimentos. Falam cada vez mais do estudo
> >da realidade, e a necessidade do conhecimento histórico peculiar de
> >cada realidade, para a poder transformar. Mário de Andrade escreve
> >então com Marc Ollivier "A guerra em Angola", o primeiro estudo
> >sociológico de um angolano. A insitência na historicidade local é
> >inequívoca. A ponte entre as noções humanistas e históricas de Anta
> >Diop e os ensinamentos de Gramsci está feita. Mas as imperfeições
> >sobre o caracter específico do nacionalismo subsistem.
> >
> >O próprio Mário de Andrade escreve nos seus últimos dias que "convém,
> >pois, questionar se um ou mais factores (entre língua, território, a
> >vida económica ou a comunidade de cultura) isolada ou simultanêamente
> >podem desempenhar o papel de motor ou de acelerador do processo de
> >organização dos homens (ou das comunidades) em nações. (...) Mau
> >grado as ilusões da época, os chamados Estados de 'democracia
> >nacional' também não produziram exemplos paradigmaticos na materia em
> >debate [o nacionalismo]. Por seu turno, a construção da unidade
> >africana (implicando a remodelação das fronteiras herdadas da
> >partilha colonial, por dinâmica externa) não se erigiu ainda em
> >factor de consolidação nacional, num quadro continental"
> >(Andrade, 1997b, 16-17).
> >
> >2. NEGRITUDE E PAN-AFRICANISMO
> >
> >A política africana está marcada por paradoxos conhecidos: luta pela
> >integridade territorial herdada de fronteiras arbitrárias versus
> >ideologia pan-africanista; discurso sobre construção nacional versus
> >realidade pluri-étnica conflictiva; adopção de preceitos de
> >desenvolvimento versus formas distributivas refractárias do mercado;
> >promoção da cidadania versus extensão de praticas autoritárias
> >perpetuadoras de sujeitos; recusa pelas elites de modelos
> >institucionais importados versus formas de apropriação e consumo
> >novo-riquistas. A lista não é exaustiva.
> >
> >Muitos destes paradoxos não são únicos ao Estado pós-colonial
> >africano, mas adquirem aqui algumas especificidades, que giram à
> >volta de dois problemas mal resolvidos, que muito ocuparam as
> >reflexões de Mário de Andrade: a questão racial e a ideologia
> >pan-africana. Ambas as questões partem de construções humanas já que
> >tanto raça, como geografia são entidades abstractas, criadas pela
> >dinâmica histórica.
> >
> >Comecemos pela questão racial. Raça no sentido biológico não existe.
> >Todas as diferenças de tipo "racial", ou seja na realidade de
> >fenotipo, limitam-se a 0,001% do genoma humano. Pesquisas no âmbito
> >das ciências sociais demonstram sem dificuldade que o uso de
> >diferenças fenotípicas entre grupos humanos, para legitimar a
> >dominação de uns sobre outros, estão presentes de uma forma quase
> >permanente em todas as regiões do globo. As outras formas permanentes
> >de dominação são o género e as classes. Apesar do caracter falacioso
> >do conceito de raça, e da desmontagem do seu valôr pseudo-científico,
> >é inegável que, como construção social, raça é algo real. E também
> >agrega as colectividades que compartilham aspectos fisicos
> >observáveis, tal como a côr da pele, textura do cabelo e compleição
> >corporal, sendo vivênciada por uma parte importante das pessoas. Se
> >existe a realidade social é natural que os intelectuais se preocupem
> >e tentem interpretar e explicar o fenómeno.
> >
> >Mário de Andrade confrontou-se cedo com esta questão, depois de
> >assistir às discussoes azedas entre os dois pais da negritude
> >(Senghor e Cesaire, por um lado) e entre estes e os expoentes da
> >diáspora americana que reinvidicavam uma identidade pan-africana
> >baseada na côr, ou seja no negro. Uma boa parte da argumentação vinha
> >da exclusão que os negros tinham sido submetidos, desde a escravatura
> >à dominação colonial, motivação primeira para a luta indpeendentista.
> >Mário de Andrade escrevia em 1953 num prefácio a uma antologia de
> >poesia negra: " Este caderno (...) não se destina
> >(...) àqueles que, para iludir seus preconceitos, e o seu racismo,
> >nos acusam de racismo. Destina-se fundamentalmente aos que sabem
> >encontrar-se reflectidos nesta poesia (...) e entendem que os negros
> >exercitam também seus timbres particulares para cantar na grande
> >sinfonia humana" (Mata, 2000, 137).
> >
> >Como ideologia o racismo foi fundado pelo pensador Francês
> >Joseph-Arthur Gobineau (1816-1882) com sua doutrina de três pontos:
> >i) a existência de várias raças humanas; ii) a compreensão das
> >diferenças entre raças como factores essenciais do processo
> >histórico-social; iii) e a afirmação da existência de uma raça
> >superior. Ela serviu de ponto de partida para que, no século XX, o
> >britânico Stewart Chamberlain (1825-1927) difundisse na Alemanha o
> >mito da superioridade da raça ariana. Alfred Rosenberg (1893-1946)
> >emprestou, depois da Primeira Guerra Mundial, um verniz
> >pseudo-científico a estas teorias, para ajudar Adolf Hitler, com as
> >consequências conhecidas. Nesta questão da construção racista a
> >Europa têm razões de sobra para modéstia.
> >
> >O impacto destas teorias na visão sobre a Africa foi fulminante.
> >Como demonstrou Mudimbe, a constante referência, implícita ou
> >explícita, a uma inferioridade negra se transplantou para uma
> >inferiodidade africana.
> >
> >O contraponto a esta negação fervilhou os anos 50 e 60 e claro que a
> >época das independências foi completamentamente sugada pela
> >necessidadde, quase o imperativo, de mostrar que existia não só uma
> >igualdade, como mesmo, porque não, uma superioridade africana. Ela
> >podia nomeadamente ver-se pelo caracter revolucionário das lutas
> >africanas. Foi pelo viés da revolução que os africanos inspiraram a
> >esquerda europeia e os seus líderes passaram a ser venerados nas
> >Universidades e centros de saber progressistas. Toda uma geração do
> >pós-guerra empenhada na transformação profunda das sociedades
> >ocidentais pulsou com o avanço da auto-determinação e das
> >independências.
> >
> >É preciso que se lembre que uma boa parte dos dirigentes das lutas
> >independentistas tinham uma audiência intelectual no ocidente que
> >seguramente era superior aos dos actuais líderes políticos do
> >continente. Pode-se assim dizer que a reinividicação em contraponto,
> >a pirâmide invertida, a afirmação do negro e da negritude, serviu
> >para algo significativo: a construção de uma ideologia poderosa.
> >
> >Mário de Andrade foi um dos artífices dessa construção ideológica.
> >Mas fê-lo sempre com um certo cepticismo. As suas críticas ao
> >discurso da negritude, e do luso-tropicalismo do brasileiro Gilberto
> >Freyre, começam já nos anos 60. À medida que o discurso étnico e
> >racial penetra o interior dos movimentos de libertação (com
> >conflictos e competição entre mestiços e negros) ele começa a
> >questionar os fundamentos da valorização do negro às expensas dos
> >princípios humanistas. Com Amílcar Cabral encontra a resposta na
> >dimensão cultural da libertação nacional. Isso é um discurso e
> >ideologia sofisticados, e completamente diferente do de muitos bandos
> >armados que pululam agora no continente. Um levantamentamento recente
> >recenseou 48 só na CEDEAO. Era Fanon que dizia que a falsificação da
> >História e a marginalização pela burguesia nacional na base da etnia,
> >raça ou religião levaria a conflictos e violência organizada.
> >
> >A maior parte do debate actual do Codesria sobre estas questões trata
> >raça como um conceito fundador. Reduz-se assim a complexidade do tema
> >e não se admite o quanto ele já estava encerrado de contradições no
> >período da libertação. Não se trata de algo inventado agora. O debate
> >entre Fred Hendricks e Suren Pillay (Pillay, 2004) sobre a relação
> >entre raça e classe na Africa do Sul actual apenas confirma que as
> >categorias raciais são também construções ideológicas. A evolução do
> >conhecimento sobre identidades obriga-nos, no entanto, a uma
> >releitura total da questão, como tentarei provar mais adiante.
> >
> >A negritude como fundamento é uma fição. Não se pode converter um
> >continente a uma raça (Pillay, 2004). Então o que e ser africano?
> >Qual é a génese e justificação de outra ideologia sempre presente: o
> >pan-africanismo?
> >
> >Edward Said demonstrou de forma definitiva que Ocidente e Oriente são
> >criações abstractas dos homens e, como acontece muitas vezes, as
> >construções ideológicas dos mais fortes e poderosos têm uma vida mais
> >farta e disseminação mais invasora. Oriente foi uma criação do
> >Ocidente. "(...) o orientalismo -disse- teve uma posição de
> >autoridade tal que não creio que ninguém ao escrever, pensar ou agir
> >sobre o Oriente pudesse fazê-lo sem se aperceber das limitações que
> >impunha ao pensamento e a accão. Em resumo, por causa do orientalismo
> >o Oriente não era (e não é) um objecto livre de pensamento ou ação.
> >Isto não significa que o orientalismo determine unilateralmente
> >aquilo que pode ser dito sobre o Oriente, mas sim que ele constitui
> >toda uma rede de interesses que são inevitavelmente convocados (e que
> >estão como tal nele implicados) em qualquer ocasião em que o Oriente
> >seja a questão" (Said, 1997, 3-4).
> >
> >Esta análise é válida em relação à Africa e até ao pan-africanismo.
> >Mas antes é preciso explicar em que circunstâncias.
> >
> >Mudimbe, seguindo a mesma linha de pensamento, demonstrou que a ideia
> >geográfica de Africa, começou por ser uma criação ocidental.
> >Isto é curioso pois a divisão do mundo em Ocidente e Oriente deixa um
> >buraco para a Africa sub-sahariana. É como se ela fosse um
> >sub-produto do Orientalismo. Ao conceito geográfico de Africa vão-se
> >associar, posteriormente, determinismos vários. Segundo Mudimbe desde
> >o século XV a Africa vai ser assimilada a uma mistura
> >pseudo-científica e ideológica que inclui campos semânticos dos
> >conceitos de primitivismo e selvajaria, importados da ideia de
> >barbarismo; e que servirão para justificar o trafego de escravos
> >(Mudimbe, 1994). Mudimbe demonstra com precisao o processo de
> >aprópriação do conceito de Africa pelos movimentos políticos
> >africanos e como, aos poucos, uma ideologia indubitavelmente gerou
> >seu contraponto: o pan-africanismo.
> >
> >A partir desta ideia central acertada Mudimbe lança-se, às vezes, num
> >ataque desproporcional sobre a construção de ideologias baseadas no
> >marxismo, e logo, por associação indirecta, as pan-africanas. Uma
> >coisa têm muito pouco a ver com a outra. Ele esquece o papel
> >transformador que essas ideologias baseadas no pan-africanismo
> >tiveram na mobilização cultural dos africanos, na alteração da sua
> >condição política, na sua autodeterminação e transformação. Esse
> >ataque levou a uma polarização entre adeptos e vilipendiadores do
> >pan-africanismo, uma divisão tão ridícula como discutir quem está a
> >favôr ou não do Orientalismo, do pan-arabismo, dos valôres asiáticos,
> >etc. Essas construções ideológicas devem servir de instrumento de
> >análise histórica dos intelectuais e não como arma de arremesso para
> >escolher campos.
> >
> >Mas quo vadis do pan-africanismo hoje?
> >
> >Mário de Andrade oferece uma pista de reflexão. Para ele a memória
> >histórica da diáspora era fundamental para entender aqueles que
> >saíram, mas também os que ficaram, como resultado do trâfego de
> >escravos. A partir dessa constatação ele mesmo se dedicou nos últimos
> >anos da sua vida a aturada pesquisa em centros de memória da diáspora
> >como a Howard University, de Washington DC, ou o Schomburg Center, em
> >Harlem, Nova Iorque. Não fazia senão continuar à procura do fascínio
> >que os negros americanos tinham provocado junto dos
> >proto-nacionalistas afro-portugueses, como os chamou: "um referente
> >priviligeado do renascimento africano (...) Mantendo-se à escuta dos
> >acontecimentos que dizem respeito aos povos do mundo negro, os
> >ideólogos e publicistas contribuem para universalizar o discurso
> >sobre a raça" (Andrade, 1997ª, 184). E acrescenta que eles apenas
> >contribuiram para um processo de ruptura e continuidade.
> >
> >"(...) o protonacionalismo, na sua essência, foi produtor de um
> >discurso com uma finalidade ilusória (...) não tinham atingido o grau
> >crítico de compreensão lógica do sistema colonial português
> >(...) E aí reside, precisamente, o ponto de ruptura que será expresso
> >pela geração que fará a sua entrada na cena da história logo depois
> >da Segunda Guerra Mundial" (Andrade, 1997ª, 186).
> >
> >Essa ruptura, que deu origem aos movimentos nacionalistas, foi
> >importante mas insuficiente. Para Mário de Andrade uma nova ruptura
> >depois das independências era inevitável. A ruptura para afirmar os
> >princípios da inclusão, pluralidade e defesa de minorias, uma ideia
> >que lhe levou à Revolta Activa dentro do MPLA, assumidamente um
> >movimento intelectual parecido com o aggiornamento da esquerda
> >europeia, contra o centralismo e as tendências autoritárias. Nessa
> >mesma linha passou a questionar a manipulação ideológica do
> >pan-africanismo pelos dirigentes dos novos Estados independentes,
> >como forma de legitimação de poderes autoritários.
> >
> >Essas interrogacões são mais importantes do que querer fazer uma
> >aturada epuração de quém é ou não é africano. Como disseram Olukoshi
> >e Nyamnjoh a questão da africanidade é um debate dos que têm poder,
> >sejam elites, dirigentes, classe média ou intelectuais. Para a grande
> >massa dos africanos a Africa é a vivência real, a luta pela dignidade
> >e a humanidade. "Para estas pessoas o facto da sua africanidade não
> >está em questão nem é uma questão (...) Somos supostos assumir, no
> >entanto, que todos os que reclamam Africa definirão os seus papeis,
> >incluindo respeitar os seus compromissos com o continente"
> >(Olukoshi/Nyamnjoh, 2004, 2).
> >
> >4. CIDADANIA, INCLUSÃO E MODERNISMO
> >
> >Qualquer ideologia têm três ambicões: i) a construção do ideário de
> >uma classe ou grupo em ascensão; ii) a sua transformação em senso
> >comum: e iii) a sua imposição em nome de todos pela nova classe
> >dirigente. Muitas vezes essa evolução acontece de forma intuitiva e
> >racional. A ideologia é uma representação, não é realidade.
> >
> >Durante a luta de libertação nacional a ideologia prevalecente
> >variava conforme os países e territórios. Podia-se, mesmo assim,
> >descortinar alguns pontos de convergência à volta de pan-africanismo,
> >nacionalismo, desenvolvimento e o papel do Estado na justificação dos
> >três pilares referidos. Com várias decadas pós-independentes e
> >possível fazer então uma crítica das ideologias que se tornaram senso
> >comum e são agora o apanágio das classes dirigentes. Os intelectuais
> >africanos devem posicionar-se na linha de frente dessa leitura
> >crítica.
> >
> >Para alguns esse debate têm vindo a ser feito como se houvesse
> >necessidade de preservar as ideologias de forma estática. Outros
> >acham que a leitura passa por uma limpeza de todos os argumentos que
> >serviram de sustentáculo a essas mesmas ideologias. Alguns argumentos
> >são interessantes. Por exemplo a defesa de uma visão pós-colonial,
> >refrescada com teorias pós-modernistas, pode ter o seu apelo. Obriga
> >a uma auto-crítica sobre o silêncio de certos intelectuais quando
> >houve clara deriva e manipulação das ideologias nacionalista e
> >pan-africanista, para fins autoritários e de exclusão. Outros são
> >falaciosos porque equacionam a Africa como apêndice da reflexão
> >antropológica ocidental, agora vestida de linguagem politicamente
> >correcta, justificando uma tendência africana para a desordem, o
> >conflicto ou formas de gestão do poder desagredadoras e acéfalas. Por
> >essa razão não é muito apropriado importar categorizações simplistas
> >de pós-modernismo ou pós-colonialismo.
> >
> >Seria um absurdo associar nacionalismo e pan-africanismo a
> >comportamento autoritário. Mário de Andrade reprovaria
> >veementemente. Mas também admitiria, e a sua vida é um exemplo disso,
> >que os dilemas da cidadania, inclusão já estavam presentes antes das
> >independências. Amílcar Cabral foi um dos mais elaborados na
> >articulação desses perigos (Lopes, 2005ª). O trabalho biográfico
> >exaustivo de Mário de Andrade sobre a obra de Cabral tinha como
> >preocupação primeira a disseminação desses alertas. Os trabalhos de
> >Claude Ake não deixam dúvidas sobre sua preocupação com o mesmo tema.
> >Na compilação "African Intellectuals" Thandika Mkandwire et al, fazem
> >uma acusação violenta à censura que essas ideologias acabaram
> >provocando, bem como ao papel de Estados intolerantes, que barraram
> >qualquer espaço ao pensamento autónomo (Mkandawire et al., 2005).
> >Porém, a associação de intelectuais a poderes autoritários deve
> >fazer-nos lembrar a cumplicidade de alguns deles.
> >
> >Este debate, curiosamente, está associado à definição de boa
> >governanca, como nos explica o mesmo Mkandawire. Durante o processo
> >de preparaçao dos estudos prospectivos do Banco Mundial sobre Africa,
> >em 1989, foram convocados vários académicos africanos. No prefácio da
> >obra final são reconhecidos como tendo sido os responsáveis por uma
> >viragem no pensamento apresentado no estudo em relação a questões de
> >governanca. No grupo havia nomes como Claude Ake, Makhtar Diouf e Ali
> >Mazrui. Esses académicos convergiam sobre o facto de que para superar
> >o desafio do desenvolvimento era preciso estabelecer relações
> >Estado-sociedade que tivessem as seguintes
> >características:
> >
> >1. - fossem desenvolvimentistas, no sentido de que permitissem uma
> >gestão da economia que maximizasse o crescimento económico, induzisse
> >mudanças estruturais, e usasse recursos de forma eficiente,
> >competitiva e sustentável; 2. - fossem democraticas e respeitosas dos
> >direitos cidadãos; 3. - e, socialmente inclusivas, providenciando
> >condicões dignas, e participação nos processos nacionais (Mkandawire,
> >2004).
> >
> >Boa governança deveria ser entendida como a implementação desses três
> >pilares, e não como depois acabou sendo popularizada.
> >
> >Qualquer uma destas características têm a ver com o pensamento
> >moderno. Ao comparar os renascimentos árabe e ocidental, Samir Amin
> >explica que a relação com a religião foi fundamental no sucesso de um
> >em relação ao outro. A laicidade do Estado, inspirada da Grécia
> >antiga, permitiu ao Ocidente uma modernidade emancipatória,
> >necessária para consolidar o capitalismo e a democracia. Já no caso
> >árabe o renascimento do século XIX nunca foi para além dos parâmetros
> >da religião muçulmana, não rompendo com conceitos tradicionais e
> >restrições de liberdade (Amin, 2004). Pode-se dizer que toda a Africa
> >batalha com problemas similares. Segundo Paulin Hountondji ao olhar
> >os ícones do passado têm de se reconhecer deficiências no seu
> >discurso modernista. "É preciso hoje apropriar-se dessa contribuição
> >de maneira lúcida, crítica e responsável" (Hountondji, 2004, 104).
> >
> >A popularização da democracia multipartidária, a partir do final dos
> >anos 80, modificou consideravelmente a paisagem política no
> >continente. Nos seus primórdios essa transformação foi provocada por
> >um conjunto de factores internos e externos: fim da guerra fria,
> >mudança das relações do continente em termos económicos e comerciais,
> >isolamento internacional crescente, ajustamento estrutural, pressão
> >para reformas institucionais, no campo externo; e no campo doméstico,
> >exasperação pela falta de alternância, urbanização e aumento
> >demográfico, juventude mais radical e desesperada, lutas pelos
> >direitos da mulher, desigualdade crescente, aparecimento de
> >movimentos cívicos.
> >
> >Como observador atento Mário de Andrade vivenciou estas
> >transformações nos seus últimos anos de vida, entre Maputo, Praia,
> >Paris e Lisboa. Preocupava-se com a restrição de liberdades na maior
> >parte do continente. A intolerância e a bajulação provocadas pelo
> >poder. Tinha horror ao cerimonial do poder. Mas nada lhe causava mais
> >desespero do que a exclusão de cidadania. Sendo ele mesmo uma vítima
> >dessa prática política podia observá-la como a hipocrisia mais
> >evidente do suposto caracter nacionalista e pan-africanista de uma
> >parte dos dirigentes africanos.
> >
> >O número de países excluindo na base de origem, raça, etnia, religião
> >ou filiação política foi-se estendendo. Se Amílcar Cabral fosse vivo,
> >a uma dada altura, teria sido destituído de sua nacionalidade
> >guineense. Como foram outros dirigentes nacionalistas importantes
> >vivos. Mário de Andrade contentou-se com nacionalidades de
> >empréstimo, praticando um pan-africanismo pragmático, que é cada vez
> >mais raro.
> >
> >O debate sobre a Ivoirité, é apenas o cume de um problema mais vasto
> >que afecta quase metade dos países do continente. Os intelectuais têm
> >de denunciar estas praticas e não podem esconder-se nas suas
> >lucubrações datadas. Cada vez mais se reconhece que o mundo têm uma
> >só atmosfera, economia, e também um direito internacional mais amplo,
> >uma comunicação mais fluída. Isso também presume a necessidade de uma
> >ética global. Uma ética que reconheça direitos de identidade baseados
> >no princípio de que o desenvolvimento é para trazer mais
> >oportunidades, ou seja mais liberdade de escolhas.
> >
> >Amartya Sen afirma que "a liberdade é central para o processo de
> >desenvolvimento por duas razões: 1) a razão avaliatória: a avaliação
> >do progresso têm de ser feita verificando-se primordialmente se houve
> >aumento da liberdade das pessoas; 2) a razão da eficácia: a
> >realização do desenvolvimento depende inteiramente da livre condição
> >de agente das pessoas" (Sen, 2002, 18).
> >
> >A medição dessas duas razões de Sen pode ser feita pelo grau de
> >cidadania e inclusão das sociedades modernas. Este é um debate
> >africano. Este é um desafio para os intelectuais africanos. Para que
> >filhos de Africa, como Mário de Andrade, não tenham que quemandar um
> >passaporte até à morte.
> >
> >Carlos Lopes, New York, Novembro 2005

PaAFRICA E OS DESAFIOS DA CIDADANIA E INCLUSÃO:
> >O LEGADO DE MÁRIO DE ANDRADE
> >
> >Palestra Cheikh Anta Diop, por Carlos Lopes (Assembleia Geral do
> >Codesria, Maputo, Dez 2005)
> >
> >Para muitos aqui presentes o nome de Mário de Andrade não despertará
> >imediatamente a atenção. Para outros relembrará, no entanto, uma
> >memória importante.
> >
> >Imaginemos o jovem que em 1954, corrigia, em Paris, as provas de um
> >livro que serviria de referência para os intelectuais africanos: "
> >Nations Nègres et Culture", de Cheikh Anta Diop. O mestre acabara a
> >sua obra prima mas estava doente e precisava de ajuda. O mais jovem
> >aprendia com esse trabalho um pouco mais das suas funções de artesão
> >das letras. O seu espírito inquieto já lhe tinha trazido alguns
> >dissabores com o seu chefe e patrão, o outro Diop. Trata-se de
> >Alioune Diop, criador da revista Présence Africaine, que a História
> >ilustre daqueles anos registou como uma contribuição fundamental, na
> >afirmação de uma identidade política em formação.
> >
> >Nada tinha, à priori, predestinado esse jovem angolano a se tornar o
> >chefe de redação de uma revista em francês, e ter a capacidade de
> >poder inclusivé corrigir as provas de Anta Diop. Bem, na realidade,
> >os seus anteriores estudos de linguística brindaram-lhe uma
> >disciplina etimológica e sintáxica que jamais descurou. Tornou-se
> >desde muito cedo no maior amigo do dicionário, o pai dos espertos,
> >como gostava de brincar. Mas na Présence Africaine começou apenas
> >como secretário particular daquele que admirava, e que pouco dinheiro
> >tinha para lhe pagar.
> >
> >Logo falaremos dos contornos de vida que levaram Mário de Andrade,
> >pois é dele que se trata, a ter esse e muitos outros encontros com a
> >História. Como eterno dissidente era natural que se tornasse em
> >eterno exilado. E foi nesse caminhar de lugar para lugar que acabou
> >cruzando a Bissau pós-independente dos anos 70. Aí tive o privilégio
> >de o conhecer, com ele trabalhar, para depois, assumidamente, me
> >considerar seu discípulo. Deixou-nos há 15 anos atrás.
> >
> >Ao ser convidado para proferir esta palestra ocorreu-me imediatamente
> >a ideia de me conectar a Anta Diop através do fio condutor geracional
> >que me leva a Mário de Andrade. Provavelmente também porque ao fazer
> >uma releitura do legado deste último, chegaremos às propostas do
> >primeiro, suas limitações, e à necessidade de contextualizar ambos
> >nos debates que nos sacodem hoje.
> >
> >Não tenhamos ilusões: os intelectuais africanos estão divididos, suas
> >propostas têm crédito reduzido, suas respostas são tentativas, o seu
> >papel ainda muito desprezado, e sua influência, por consequênçia,
> >bastante limitada. É minha convição que o exemplo de Mário de Andrade
> >é significativo, nomeadamente para nós do espaço lusófono, para
> >entender os actuais desafios dos intelectuais africanos.
> >
> >Vou dividir esta palestra em quatro partes: começarei por apresentar
> >sucintamente o tempo de Mário de Andrade e a geração que o precedeu,
> >e que ele mesmo designou de proto-nacionalista; depois virá uma visão
> >crítica do nacionalismo africano e as suas propostas revolucionárias;
> >em seguida as conquistas, mas também as derivas da negritude e do
> >pan-africanismo; isso permitirá depois analisar as consequências para
> >a cidadania, inclusão e respeito de identidades; e, finalmente,
> >terminar com a interrogação sobre o que tudo isto representa para os
> >intelectuais africanos.
> >
> >1. COMO TUDO COMEÇOU
> >
> >Mário Coelho Pinto de Andrade nasceu no Golungo Alto, na provínvia do
> >Kwanza Norte, em 21 de Agosto de 1928. O seu pai, José Cristino Pinto
> >de Andrade, funcionário bancário, foi um dos fundadores da Liga
> >Africana. Sua mãe, era descendente, mas um pouco abandonada, de uma
> >família de fazendeiros. Mário de Andrade viveu entre pais separados e
> >famílias com várias ramificações, à boa maneira africana. A formação
> >da sua personalidade foi marcada pela vivência rural oferecida pela
> >família de sua mãe, com quem ficou um tempo, mas mais intensamente
> >pelo ingresso no Seminario Católico de Luanda, onde estudou com seu
> >irmão Joaquim, o ex-Cardeal de Luanda D.
> >Alexandre do Nascimento, e outras grandes figuras do nacionalismo
> >angolano.
> >
> >Ao descrever a Luanda dos anos 30 Mário de Andrade, no seu título
> >postumo "As Origens do Nacionalismo", fala-nos de uma míriade de
> >instituições, jornais e processos, que se desenvolveram
> >simultâneamente nas várias colonias portuguesas de Africa. As
> >referências ao resto do continente e ao Brasil estão obviamente
> >presentes, mas não de maneira marcante. Estes movimentos são apegados
> >à valorização dos filhos da terra, em oposição aos que dela não se
> >interessam. Os seus membros quase sempre se revoltam pela falta de
> >atenção das autoridades, o desleixo burocrático e as injustiças no
> >tratamento dos conhecimentos locais, em relação aos que chegam da
> >metrópole.
> >
> >Sem querer detalhar a complicada, embora fascinante, evolução destes
> >movimentos, também chamados de nativos, ou nativistas, a verdade é
> >que eles congregam cada vez mais reinvidicações de caracter político.
> >Essa vertente acabará por determinar o seu futuro: a luta por
> >direitos e, nessa luta, a defesa da cidadania plena.
> >
> >Mas tratava-se de facto de uma cidadania plena, como podemos conceber
> >hoje? Não. Os proto-nacionalistas, como os baptizou Mário de Andrade,
> >eram cheios de contradições e pensavam que os valôres da terra
> >estavam associados à sua capacidade de os protagonizar, ou seja,
> >eles, letrados ou portadores de cultura e saber, no sentido lato
> >desses termos, deveriam ter direitos iguais aos outros cidadãos
> >portugueses. Mas aí parava a reinvidicação.
> >
> >Influenciada pela forma como o Brasil se tornou independente a elite
> >portuguesa distanciou-se um pouco de suas congéneres coloniais
> >europeias, na legitimação de sua ação colonizadora. Em todo o período
> >republicano português sempre existiu alguma forma de representação
> >das colonias nos poderes legislativos centrais, porquanto isso fosse
> >absolutamente não democrático, como justificação para uma ideologia
> >centralizadora: uma só nação, dividida por vários territórios. Assim
> >regia o velho sonho do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, que
> >involuntariamente se transformou em teórico da excepção portuguesa.
> >Ele acreditava que 'o mundo que o português criou' era mais cordial,
> >simpatico e menos dado a uma dominação absoluta e racista. Na
> >realidade esse mundo era mais perverso e se defendia com argumentos
> >diferentes por nunca ter tido a força de dominar economicamente o que
> >detinha, e por essa razão, defensiva, ter-se transformado no mais
> >centralizador dos impérios. Centro fraco, sim, mas com ideologia
> >diferente.
> >
> >Não deixa de ser verdade que os portugueses criaram arquipelagos de
> >relações sociais perversas, e crioulizaram até os movimentos, que
> >depois dariam origem a luta anti-colonial. Ela começa com os
> >proto-nacionalistas. Negros na sua maioria, mas também mestiços e até
> >alguns brancos nativos co-optados para a causa.
> >
> >O processo de urbanização dos anos 30 em Luanda favoreceu o
> >florescimento de bairros típicos, como as Ingombotas, que para além
> >do Km 5, como aludia Mário de Andrade, congregava famílias como a
> >dele próprio, mas também as de Bento Ribeiro, Viana, Mingas, Vieira
> >Dias e Van-Dunem; nomes que qualquer aprendiz da política angolana
> >reconhece. Mário de Andrade não era um membro qualquer dessa
> >comunidade já que muito jovem foi recrutado como professor de latim e
> >português em vários colegios da cidade. Para um negro sem formação
> >universitária isto era um autêntico fenómeno. Ele chegou a ser
> >Professor de gente hoje famosa como Carlos Ervedosa ou Uanhenga Xitu.
> >Seu irmão, que depois seria enviado para a Universidade Gregoriana de
> >Roma, também foi docente, e depois já como padre, Chanceler da
> >Arquidiocese de Luanda; até ser preso em 1960 pelas autoridades
> >portuguesas, durante 14 anos. Nesse interim foi Presidente honorário
> >do MPLA, eleito em 1962. Estamos pois em presença de duas grandes
> >figuras da mesma família que muito influenciaram os rumos da
> >discussão política de Angola.
> >
> >A geração de seu pai, que Mário de Andrade pejorativamente
> >classificava de lumpen-aristocracia, "eram assimilados, eram homens
> >que acreditavam serem verdadeiramente os defensores dos valôres
> >antigos" (Andrade, 1997a, 35). Mas liam os autores brasileiros, bem
> >como Gogol e Gorsky, e muitos eram os divulgadores de "A voz de
> >Angola clamando no deserto", um texto ensaístico de 1901, que servia
> >de referência para a construção de uma identidade de luta.
> >
> >Poucos negros tinham a possibilidade de estudar, já que as regras
> >apertadas da política de assimilação, coabitavam com alguns negros em
> >lugares de destaque, mas apenas os que conseguiam furar a malha da
> >descriminação burocrática. A descriminação social, essa era toda uma
> >outra realidade. Mesmo assim os priviligeados que se destacavam iam
> >para Lisboa. Para lá conseguiu rumar, com dificuldades, Mário de
> >Andrade, em 1948. Na bagagem levava algumas promessas, como a que
> >fez ao seu amigo de tertúlia literária Viriato da Cruz, de que
> >ficaria sempre sintonizado com a terra. Viriato da Cruz viria a criar
> >uma série de movimentos de caracter comunista, fez parte do núcleo
> >fundador do MPLA, e morreu no exílio na China.
> >
> >Mário de Andrade ficará em Lisboa apenas cinco anos, mas parecerão
> >muitos mais para qualquer historiador contemporâneo. É neste período
> >que a agitação da Casa dos Estudantes do Império vai desembocar na
> >criação do Centro de Estudos Africanos, na publicação de várias obras
> >de ensaio e poesia de exaltação da africanidade e negritude, e a
> >maturação das ideias que depois darão origem aos movimentos
> >nacionalistas mais radicais das colonias portuguesas. O expoente
> >deste processo é, sem dúvida, Amílcar Cabral, cujo nome afectivamente
> >Mário de Andrade associa a toda a sua geração: a Geração de Cabral.
> >Mas o agente cultural é Mário de Andrade.
> >
> >Nas palavras dos própios eles começaram a 'reafricanizar os seus
> >espíritos', a entender que os negros tinham mais do que direitos,
> >tinham direito à sua própria independência. A sua dignidade passava
> >pela sua auto-determinação. As leituras e circulação de ideias
> >marxistas davam uma base sólida para poder conceber uma nova forma de
> >luta, unitária, capaz de entender a complexidade da realidade
> >colonial. A força desses movimentos virá do seu caracter unitário, e
> >esse caracter reforça-se na base da concepção colectiva da Africa e
> >das lutas nacionais.
> >
> >Esses movimentos não experimentam qualquer contradição entre a defesa
> >do negro e sua dimensão profundamente humanista e inclusiva.
> >Os seus primeiros apoios vem do Marrocos, da Argélia, da Tunísia de
> >Bourghiba, um dos grandes contribuintes do nacionalismo, do Egipto de
> >Nasser. O papel posterior de Ben Bella e de Fanon será magnético.
> >Em menor escala são influenciados pelos nacionalistas de outras
> >paragens, mas mitificam a Independência dos etíopes e são entusiastas
> >do processo de criação da OUA.
> >
> >Mas, sem margem para dúvida, são os intelectuais e a diaspora que
> >servem primeiro de luz. Eles mesmos sendo da diaspora não poderia ser
> >de outra forma. Para tanto a deslocação de Mário de Andrade para
> >Paris é decisiva. As grandes influências literárias em Lisboa são
> >Nicolas Guillén, Alan Patton, Leopold Sedar Senghor, Aimé Cesaire,
> >Roy Albridge, Countee Cullem, Langston Hughes e os brasileiros Lins
> >do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos. O bibliotecário do grupo, vai
> >alargar os horizontes a partir de Paris. Mário de Andrade trava
> >conhecimento directo, entre outros, com Ferdinand Oyono, Richard
> >Wright, René Maran, Eza Boto, Bernard Dadié, Ray Autra, Albert Camus,
> >Jean-Paul Sartre, René Depestre, para além dos seus professores
> >Georges Gurvitch, Georges Balandier e Roger Bastide, os pais da
> >sociologia moderna Francesa.
> >
> >Nesse leque enriquecedor vão também entrar William Dubois, para além
> >de Cesaire, Senghor, Anta Diop e tantos outros que participaram nos
> >Congressos Pan-africanistas, e de escritores e artistas negros,
> >alguns dos quais Mário de Andrade ajudou a organizar, entre Londres,
> >Paris e Roma. É durante esse período que começam a surgir as
> >primeiras contradições na interpretação pan-africana, polarizadas à
> >volta de Dubois e Marcus Garvey, um americano e outro jamaicano.
> >Segundo Andrade "ressente-se a convergência conceptual na visão
> >utópica da Africa. Fundamentado na convição teórica de uma
> >superioridade dos Afro-Americanos (Black American ou
> >African-American), adquirida ao longo do processo da escravatura,
> >Marcus Garvey 'an extraordinary leader of men', nos própios termos de
> >Dubois, vislumbrava a organização de um esforço de construção do
> >continente a partir da Libéria, espaço de realização económica e
> >financeira de um modelo de sociedade forjada nos Estados Unidos da
> >América, conforme o paradigma civilizacional do Ocidente" (Andrade,
> >1997b, 161).
> >
> >Esses anos 50 e 60 são os das lutas independentistas do continente.
> >O FLN argelino, Kwame Nkrumah e Sekou Touré criam as bases para
> >albergar os nacionalistas de todos os quadrantes. Essa ajuda vai ser
> >bem utilizada pelos nacionalistas das colonias portuguesas. Não é
> >pois de admirar que Mário de Andrade comece cada vez mais a
> >frequentar Argel, Casablanca, Accra, para eventualmente mudar para
> >Conakry em 1960, o ano das Independências africanas. Várias razões
> >militaram para essa escolha; mas a mais importante é a presença de
> >Amílcar Cabral, que tinha assumido a liderença da Frente
> >Revolucionária Africana para a Independência, que depois cedeu o
> >lugar, em 1961, à Conferência das Organizações Nacionalistas das
> >Colonias Portuguesas, que Mário de Andrade dirige de facto, na sua
> >qualidade de Secretário Geral.
> >
> >Antes de se instalar em Conakry Amílcar Cabral havia criado o Partido
> >Africano para Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), e
> >contribuído para unificar vários movimentos nacionalistas angolanos
> >que darão origem ao MPLA, no ano charneira de 1956. O primeiro
> >Comité Director do MPLA é estabelecido em 1960, sendo Mário de
> >Andrade escolhido como primeiro Presidente. Ele depressa cederá o
> >lugar a Agostinho Neto, em 1962, por razões que já explicarei.
> >
> >Mário de Andrade, dirige a CONCP, retorna às lides intelectuais onde
> >navegava com facilidade e serve de ponte externa aos vários
> >movimentos. No início dos anos 70 chega a participar, em condicões
> >dramáticas, na frente leste da luta armada. Mas quando em 1974, nas
> >vesperas da independência se posiciona contra a ala dita
> >presidencialista, de Agostinho Neto, é como outros dirigentes,
> >incluindo seu irmão Joaquim, empurrado para uma dissidência, que fica
> >conhecida como a da 'Revolta Activa'.
> >
> >A 11 de Novembro de 1975 Angola torna-se independente, debaixo do
> >fogo de uma guerra civil que durará mais 30 anos. Mas antes que Mário
> >de Andrade possa se quer participar das escolhas do país para o qual
> >foi um lutador incansavel, já acusado de fracionismo e refugia-se na
> >Guiné Bissau. O então Presidente, Luís Cabral, irmão de Amílcar,
> >acolhe-o como biógrafo do heroi guineense e caboverdiano, e depois
> >nomeia-o Presidente do Conselho Nacional de Cultura, e mais tarde
> >Ministro da Informação e Cultura. Por lá ficará Mário de Andrade, com
> >actividade cultural frenética, até ao primeiro golpe de Estado da
> >Guiné Bissau em Novembro de 1980.
> >
> >Novo exílio e fim de vida num Hospital de Londres dez anos depois. O
> >tempo de ainda escrever obras fundamentais, aprimorar sua
> >contribuição sobre o papel dos intelectuais, antes de ser enterrado
> >com cerimonial de Estado em Luanda, no seu país, onde só regressa no
> >caixão e ... que nunca lhe concedeu um passaporte.
> >
> >2. NACIONALISMO E PENSAMENTO REVOLUCIONÁRIO
> >
> >Seria certamente interessante fazer mais uma incursão analítica sobre
> >o discurso nacionalista africano. O que nos importa, no entanto, é
> >tão somente reflectir sobre em que contexto o pensamento de Mário
> >Andrade sobre Nação e nacionalismo evoluiu, e demonstrar quão actual
> >continuam a ser às suas análises.
> >
> >Mário de Andrade foi primeiro influenciado sobre a necessidade de uma
> >historicidade africana. Na altura o objectivo era refutar a tese
> >hegeliana da ausência de História africana. Esse período, que chamei
> >de pirâmide invertida, tinha em nomes como Joseph Ki-Zerbo, Téophile
> >Obenga e outros, os defensores da demonstração de que a História de
> >Africa era uma antítese do que se tinha dito durante muito tempo.
> >Houve exageros de algumas formulações apressadas e certas analogias e
> >comparações. Com a distância do tempo a profundidade de Cheickh Anta
> >Diop destaca-se.
> >
> >Profundo humanista ele tentou demonstrar que o lugar da contribuição
> >negra para a História Universal era irrefutável, e tinha o seu ponto
> >culminante na civilização egípcia. Ao fazê-lo desenvolveu várias
> >teses, sendo a mais intrigante a relacionada à pigmentação e
> >melanoma, como factores de manipulação do pensamento civilizacional
> >ocidental. Falando da unidade biológica do ser humano Anta Diop dizia
> >que"... le problème est de rééduquer notre perception de l'être
> >humain, pour qu'elle se détache de l'apparence raciale et se polarise
> >sur l'humain débarrassé de toutes coordonnées ethniques."
> >(Diop, 1982, 138).
> >
> >Era natural que Anta Diop define-se a problemática nacional em termos
> >de contraponto à ideia de uma civilização ocidental. Como renomado
> >egiptólogo provou que a realidade da presença negra no composito dos
> >valôres modernos universais era reconhecida até pelos gregos. No
> >contexto da sua época era singular o direito ao contraditório. Era
> >algo que poucos podiam fazer com a qualidade e audiência de Anta
> >Diop. Mas houve exageros. Assim ele reforçou, duvidosamente, a ideia
> >de que a unidade biológica dos humanos só podia ser repartida pela
> >vivência cultural e não civilizacional, já que os fundamentos desta
> >última são contribuição de todos. E, no caso singular do Egipto,
> >sobretudo dos negros. Daí a confundir nação e cultura, contendo esta
> >as tais especificidades de alteridade, era um passo compreensível.
> >Mas na realidade errado, já que o próprio conceito de puridade racial
> >que Anta Diop denunciava com veemência, lhe servia igualmente de
> >fundamento para a diferenciação.
> >
> >Trata-se do debate da época, mas um debate que continua presente no
> >nosso tempo. Como se situava Mário de Andrade nessa discussão?
> >
> >Ao designar de proto-nacionalista a geração de seu pai, Mário de
> >Andrade admitiu que às lutas fragmentadas pela dignidade dos filhos
> >da terra tinham uma vertente que levaria a uma reinvidicação de tipo
> >nacional. Ele mesmo, filho, acabou integrando a geração que luta
> >pelos direito a auto-determinação e independência, e fê-lo com a
> >ideia de que Nação era um instrumento utilitário para unificar lutas
> >fragmentadas. Ou seja era uma invenção social conveniente que ganhou
> >forma com a contribuição dos própios protagonistas. Nada de diferente
> >em relação ao pan-africanismo, outra construção hipotética, inventada
> >pela diaspora militante, que não dispunha de identificacao
> >territorial própria no continente.
> >
> >Construções sociais eram ponto comum nos debates marxistas de então.
> >Com a reinterpretação de desejo nacional oferecida pela Comuna de
> >Paris o nacionalismo passou a ser associado à luta de classes. Kwame
> >Nkrumah entitulou o seu livro principal "Luta de classes em Africa",
> >Fanon desenvolveu a teoria da substituição do caracter revolucionário
> >e nacionalista do proletariado pelos camponeses africanos, e Amílcar
> >Cabral teorizou que o conjunto da população colonizada se
> >transformava em classe nacional.
> >
> >Para completar estes artifícios teóricos faltava a fundamentação
> >histórica que Anta Diop e seus companheiros proporcionavam. Ao
> >inaugurar o primeiro laboratório de carbono 14 na Africa, Anta Diop,
> >simbolicamente, mostrava a capacidade adquirida de datar os factos,
> >uma prova da antiguidade da historicidade em construção, o elemento
> >fundamental do nacionalismo cultural.
> >
> >Se cultura servia de matriz, então ela tinha de ter uma forma
> >marcante de alteridade, em relação aos valôres culturais do
> >colonizador. Quase que automaticamente esta alteridade era encontrada
> >no caracter negro, o elemento excluído da assimilação colonial. Até
> >Fanon, a partir da Argélia, o reconhecia, mostrando que essa
> >reinvidicação da alteridade negra, não era uma luta racial, ainda
> >menos racista.
> >
> >Este nacionalismo encontrava eco na negritude. Mário de Andrade
> >admirou o rompimento de Aimé Césaire deputado, com o Partido
> >Comunista Francês, por este último não ser capaz de integrar a
> >dimensão cultural das colonias na equação sobre a luta de classes.
> >Achou aquela posição mais corajosa do que a de Senghor que via na
> >negritude apenas um elogio da estética negra, complementar senão
> >equiparável à ocidental. Mas as contradições avolumavam-se. Como
> >distinguir lutas anti-coloniais, genuinamente apenas 'do contra', da
> >sofisticada elaboração nacionalista. Ainda por cima era claro que se
> >tratava de um nacionalismo sem Nação, nas várias definições adoptadas
> >na época. Todas à volta da elevação de caracteres comuns como língua,
> >religião, ancestralidade, ou cultura.
> >
> >Com a chegada de vários líderes pan-africanistas ao poder começam a
> >ver-se algumas diferenças entre o nacionalismo dos revolucionários
> >asiáticos e o dos africanos. O movimento que conduzirá ao Maio de 68
> >foi aquecendo os debates da esquerda francesa, muito presente nos
> >debates dos nacionalistas, devido ao papel motor da Argélia na
> >libertação do continente.
> >
> >Mário de Andrade voltava-se, por seu turno, para os ensinamentos de
> >António Gramsci: a complexidade do estudo da realidade, para a sua
> >transformação (como preconizava o princípio do intelectual orgânico).
> >Ele dá-se conta que a dimensão cultural é melhor captada demonstrando
> >que a luta nacionalista é uma forma de dignificação civilizacional. A
> >tese é de Amílcar Cabral: a luta de libertação é uma demonstração de
> >vontade própria e por isso trata-se de um acto de cultura. Por essa
> >mesma razão a luta não pode ser contra os indivíduos mas contra os
> >sistemas. O reforço do caracter humanista é resultado das reticências
> >que ambos, Cabral e Andrade, desenvolvem em relação ao que estão
> >vendo das independências africanas.
> >Sobretudo a deriva autoritária de Nkrumah e Sekou Touré, que eles
> >conhecem mais de perto. Mas também as tendências que eles mesmos
> >observam nos seus própios movimentos. Falam cada vez mais do estudo
> >da realidade, e a necessidade do conhecimento histórico peculiar de
> >cada realidade, para a poder transformar. Mário de Andrade escreve
> >então com Marc Ollivier "A guerra em Angola", o primeiro estudo
> >sociológico de um angolano. A insitência na historicidade local é
> >inequívoca. A ponte entre as noções humanistas e históricas de Anta
> >Diop e os ensinamentos de Gramsci está feita. Mas as imperfeições
> >sobre o caracter específico do nacionalismo subsistem.
> >
> >O próprio Mário de Andrade escreve nos seus últimos dias que "convém,
> >pois, questionar se um ou mais factores (entre língua, território, a
> >vida económica ou a comunidade de cultura) isolada ou simultanêamente
> >podem desempenhar o papel de motor ou de acelerador do processo de
> >organização dos homens (ou das comunidades) em nações. (...) Mau
> >grado as ilusões da época, os chamados Estados de 'democracia
> >nacional' também não produziram exemplos paradigmaticos na materia em
> >debate [o nacionalismo]. Por seu turno, a construção da unidade
> >africana (implicando a remodelação das fronteiras herdadas da
> >partilha colonial, por dinâmica externa) não se erigiu ainda em
> >factor de consolidação nacional, num quadro continental"
> >(Andrade, 1997b, 16-17).
> >
> >2. NEGRITUDE E PAN-AFRICANISMO
> >
> >A política africana está marcada por paradoxos conhecidos: luta pela
> >integridade territorial herdada de fronteiras arbitrárias versus
> >ideologia pan-africanista; discurso sobre construção nacional versus
> >realidade pluri-étnica conflictiva; adopção de preceitos de
> >desenvolvimento versus formas distributivas refractárias do mercado;
> >promoção da cidadania versus extensão de praticas autoritárias
> >perpetuadoras de sujeitos; recusa pelas elites de modelos
> >institucionais importados versus formas de apropriação e consumo
> >novo-riquistas. A lista não é exaustiva.
> >
> >Muitos destes paradoxos não são únicos ao Estado pós-colonial
> >africano, mas adquirem aqui algumas especificidades, que giram à
> >volta de dois problemas mal resolvidos, que muito ocuparam as
> >reflexões de Mário de Andrade: a questão racial e a ideologia
> >pan-africana. Ambas as questões partem de construções humanas já que
> >tanto raça, como geografia são entidades abstractas, criadas pela
> >dinâmica histórica.
> >
> >Comecemos pela questão racial. Raça no sentido biológico não existe.
> >Todas as diferenças de tipo "racial", ou seja na realidade de
> >fenotipo, limitam-se a 0,001% do genoma humano. Pesquisas no âmbito
> >das ciências sociais demonstram sem dificuldade que o uso de
> >diferenças fenotípicas entre grupos humanos, para legitimar a
> >dominação de uns sobre outros, estão presentes de uma forma quase
> >permanente em todas as regiões do globo. As outras formas permanentes
> >de dominação são o género e as classes. Apesar do caracter falacioso
> >do conceito de raça, e da desmontagem do seu valôr pseudo-científico,
> >é inegável que, como construção social, raça é algo real. E também
> >agrega as colectividades que compartilham aspectos fisicos
> >observáveis, tal como a côr da pele, textura do cabelo e compleição
> >corporal, sendo vivênciada por uma parte importante das pessoas. Se
> >existe a realidade social é natural que os intelectuais se preocupem
> >e tentem interpretar e explicar o fenómeno.
> >
> >Mário de Andrade confrontou-se cedo com esta questão, depois de
> >assistir às discussoes azedas entre os dois pais da negritude
> >(Senghor e Cesaire, por um lado) e entre estes e os expoentes da
> >diáspora americana que reinvidicavam uma identidade pan-africana
> >baseada na côr, ou seja no negro. Uma boa parte da argumentação vinha
> >da exclusão que os negros tinham sido submetidos, desde a escravatura
> >à dominação colonial, motivação primeira para a luta indpeendentista.
> >Mário de Andrade escrevia em 1953 num prefácio a uma antologia de
> >poesia negra: " Este caderno (...) não se destina
> >(...) àqueles que, para iludir seus preconceitos, e o seu racismo,
> >nos acusam de racismo. Destina-se fundamentalmente aos que sabem
> >encontrar-se reflectidos nesta poesia (...) e entendem que os negros
> >exercitam também seus timbres particulares para cantar na grande
> >sinfonia humana" (Mata, 2000, 137).
> >
> >Como ideologia o racismo foi fundado pelo pensador Francês
> >Joseph-Arthur Gobineau (1816-1882) com sua doutrina de três pontos:
> >i) a existência de várias raças humanas; ii) a compreensão das
> >diferenças entre raças como factores essenciais do processo
> >histórico-social; iii) e a afirmação da existência de uma raça
> >superior. Ela serviu de ponto de partida para que, no século XX, o
> >britânico Stewart Chamberlain (1825-1927) difundisse na Alemanha o
> >mito da superioridade da raça ariana. Alfred Rosenberg (1893-1946)
> >emprestou, depois da Primeira Guerra Mundial, um verniz
> >pseudo-científico a estas teorias, para ajudar Adolf Hitler, com as
> >consequências conhecidas. Nesta questão da construção racista a
> >Europa têm razões de sobra para modéstia.
> >
> >O impacto destas teorias na visão sobre a Africa foi fulminante.
> >Como demonstrou Mudimbe, a constante referência, implícita ou
> >explícita, a uma inferioridade negra se transplantou para uma
> >inferiodidade africana.
> >
> >O contraponto a esta negação fervilhou os anos 50 e 60 e claro que a
> >época das independências foi completamentamente sugada pela
> >necessidadde, quase o imperativo, de mostrar que existia não só uma
> >igualdade, como mesmo, porque não, uma superioridade africana. Ela
> >podia nomeadamente ver-se pelo caracter revolucionário das lutas
> >africanas. Foi pelo viés da revolução que os africanos inspiraram a
> >esquerda europeia e os seus líderes passaram a ser venerados nas
> >Universidades e centros de saber progressistas. Toda uma geração do
> >pós-guerra empenhada na transformação profunda das sociedades
> >ocidentais pulsou com o avanço da auto-determinação e das
> >independências.
> >
> >É preciso que se lembre que uma boa parte dos dirigentes das lutas
> >independentistas tinham uma audiência intelectual no ocidente que
> >seguramente era superior aos dos actuais líderes políticos do
> >continente. Pode-se assim dizer que a reinividicação em contraponto,
> >a pirâmide invertida, a afirmação do negro e da negritude, serviu
> >para algo significativo: a construção de uma ideologia poderosa.
> >
> >Mário de Andrade foi um dos artífices dessa construção ideológica.
> >Mas fê-lo sempre com um certo cepticismo. As suas críticas ao
> >discurso da negritude, e do luso-tropicalismo do brasileiro Gilberto
> >Freyre, começam já nos anos 60. À medida que o discurso étnico e
> >racial penetra o interior dos movimentos de libertação (com
> >conflictos e competição entre mestiços e negros) ele começa a
> >questionar os fundamentos da valorização do negro às expensas dos
> >princípios humanistas. Com Amílcar Cabral encontra a resposta na
> >dimensão cultural da libertação nacional. Isso é um discurso e
> >ideologia sofisticados, e completamente diferente do de muitos bandos
> >armados que pululam agora no continente. Um levantamentamento recente
> >recenseou 48 só na CEDEAO. Era Fanon que dizia que a falsificação da
> >História e a marginalização pela burguesia nacional na base da etnia,
> >raça ou religião levaria a conflictos e violência organizada.
> >
> >A maior parte do debate actual do Codesria sobre estas questões trata
> >raça como um conceito fundador. Reduz-se assim a complexidade do tema
> >e não se admite o quanto ele já estava encerrado de contradições no
> >período da libertação. Não se trata de algo inventado agora. O debate
> >entre Fred Hendricks e Suren Pillay (Pillay, 2004) sobre a relação
> >entre raça e classe na Africa do Sul actual apenas confirma que as
> >categorias raciais são também construções ideológicas. A evolução do
> >conhecimento sobre identidades obriga-nos, no entanto, a uma
> >releitura total da questão, como tentarei provar mais adiante.
> >
> >A negritude como fundamento é uma fição. Não se pode converter um
> >continente a uma raça (Pillay, 2004). Então o que e ser africano?
> >Qual é a génese e justificação de outra ideologia sempre presente: o
> >pan-africanismo?
> >
> >Edward Said demonstrou de forma definitiva que Ocidente e Oriente são
> >criações abstractas dos homens e, como acontece muitas vezes, as
> >construções ideológicas dos mais fortes e poderosos têm uma vida mais
> >farta e disseminação mais invasora. Oriente foi uma criação do
> >Ocidente. "(...) o orientalismo -disse- teve uma posição de
> >autoridade tal que não creio que ninguém ao escrever, pensar ou agir
> >sobre o Oriente pudesse fazê-lo sem se aperceber das limitações que
> >impunha ao pensamento e a accão. Em resumo, por causa do orientalismo
> >o Oriente não era (e não é) um objecto livre de pensamento ou ação.
> >Isto não significa que o orientalismo determine unilateralmente
> >aquilo que pode ser dito sobre o Oriente, mas sim que ele constitui
> >toda uma rede de interesses que são inevitavelmente convocados (e que
> >estão como tal nele implicados) em qualquer ocasião em que o Oriente
> >seja a questão" (Said, 1997, 3-4).
> >
> >Esta análise é válida em relação à Africa e até ao pan-africanismo.
> >Mas antes é preciso explicar em que circunstâncias.
> >
> >Mudimbe, seguindo a mesma linha de pensamento, demonstrou que a ideia
> >geográfica de Africa, começou por ser uma criação ocidental.
> >Isto é curioso pois a divisão do mundo em Ocidente e Oriente deixa um
> >buraco para a Africa sub-sahariana. É como se ela fosse um
> >sub-produto do Orientalismo. Ao conceito geográfico de Africa vão-se
> >associar, posteriormente, determinismos vários. Segundo Mudimbe desde
> >o século XV a Africa vai ser assimilada a uma mistura
> >pseudo-científica e ideológica que inclui campos semânticos dos
> >conceitos de primitivismo e selvajaria, importados da ideia de
> >barbarismo; e que servirão para justificar o trafego de escravos
> >(Mudimbe, 1994). Mudimbe demonstra com precisao o processo de
> >aprópriação do conceito de Africa pelos movimentos políticos
> >africanos e como, aos poucos, uma ideologia indubitavelmente gerou
> >seu contraponto: o pan-africanismo.
> >
> >A partir desta ideia central acertada Mudimbe lança-se, às vezes, num
> >ataque desproporcional sobre a construção de ideologias baseadas no
> >marxismo, e logo, por associação indirecta, as pan-africanas. Uma
> >coisa têm muito pouco a ver com a outra. Ele esquece o papel
> >transformador que essas ideologias baseadas no pan-africanismo
> >tiveram na mobilização cultural dos africanos, na alteração da sua
> >condição política, na sua autodeterminação e transformação. Esse
> >ataque levou a uma polarização entre adeptos e vilipendiadores do
> >pan-africanismo, uma divisão tão ridícula como discutir quem está a
> >favôr ou não do Orientalismo, do pan-arabismo, dos valôres asiáticos,
> >etc. Essas construções ideológicas devem servir de instrumento de
> >análise histórica dos intelectuais e não como arma de arremesso para
> >escolher campos.
> >
> >Mas quo vadis do pan-africanismo hoje?
> >
> >Mário de Andrade oferece uma pista de reflexão. Para ele a memória
> >histórica da diáspora era fundamental para entender aqueles que
> >saíram, mas também os que ficaram, como resultado do trâfego de
> >escravos. A partir dessa constatação ele mesmo se dedicou nos últimos
> >anos da sua vida a aturada pesquisa em centros de memória da diáspora
> >como a Howard University, de Washington DC, ou o Schomburg Center, em
> >Harlem, Nova Iorque. Não fazia senão continuar à procura do fascínio
> >que os negros americanos tinham provocado junto dos
> >proto-nacionalistas afro-portugueses, como os chamou: "um referente
> >priviligeado do renascimento africano (...) Mantendo-se à escuta dos
> >acontecimentos que dizem respeito aos povos do mundo negro, os
> >ideólogos e publicistas contribuem para universalizar o discurso
> >sobre a raça" (Andrade, 1997ª, 184). E acrescenta que eles apenas
> >contribuiram para um processo de ruptura e continuidade.
> >
> >"(...) o protonacionalismo, na sua essência, foi produtor de um
> >discurso com uma finalidade ilusória (...) não tinham atingido o grau
> >crítico de compreensão lógica do sistema colonial português
> >(...) E aí reside, precisamente, o ponto de ruptura que será expresso
> >pela geração que fará a sua entrada na cena da história logo depois
> >da Segunda Guerra Mundial" (Andrade, 1997ª, 186).
> >
> >Essa ruptura, que deu origem aos movimentos nacionalistas, foi
> >importante mas insuficiente. Para Mário de Andrade uma nova ruptura
> >depois das independências era inevitável. A ruptura para afirmar os
> >princípios da inclusão, pluralidade e defesa de minorias, uma ideia
> >que lhe levou à Revolta Activa dentro do MPLA, assumidamente um
> >movimento intelectual parecido com o aggiornamento da esquerda
> >europeia, contra o centralismo e as tendências autoritárias. Nessa
> >mesma linha passou a questionar a manipulação ideológica do
> >pan-africanismo pelos dirigentes dos novos Estados independentes,
> >como forma de legitimação de poderes autoritários.
> >
> >Essas interrogacões são mais importantes do que querer fazer uma
> >aturada epuração de quém é ou não é africano. Como disseram Olukoshi
> >e Nyamnjoh a questão da africanidade é um debate dos que têm poder,
> >sejam elites, dirigentes, classe média ou intelectuais. Para a grande
> >massa dos africanos a Africa é a vivência real, a luta pela dignidade
> >e a humanidade. "Para estas pessoas o facto da sua africanidade não
> >está em questão nem é uma questão (...) Somos supostos assumir, no
> >entanto, que todos os que reclamam Africa definirão os seus papeis,
> >incluindo respeitar os seus compromissos com o continente"
> >(Olukoshi/Nyamnjoh, 2004, 2).
> >
> >4. CIDADANIA, INCLUSÃO E MODERNISMO
> >
> >Qualquer ideologia têm três ambicões: i) a construção do ideário de
> >uma classe ou grupo em ascensão; ii) a sua transformação em senso
> >comum: e iii) a sua imposição em nome de todos pela nova classe
> >dirigente. Muitas vezes essa evolução acontece de forma intuitiva e
> >racional. A ideologia é uma representação, não é realidade.
> >
> >Durante a luta de libertação nacional a ideologia prevalecente
> >variava conforme os países e territórios. Podia-se, mesmo assim,
> >descortinar alguns pontos de convergência à volta de pan-africanismo,
> >nacionalismo, desenvolvimento e o papel do Estado na justificação dos
> >três pilares referidos. Com várias decadas pós-independentes e
> >possível fazer então uma crítica das ideologias que se tornaram senso
> >comum e são agora o apanágio das classes dirigentes. Os intelectuais
> >africanos devem posicionar-se na linha de frente dessa leitura
> >crítica.
> >
> >Para alguns esse debate têm vindo a ser feito como se houvesse
> >necessidade de preservar as ideologias de forma estática. Outros
> >acham que a leitura passa por uma limpeza de todos os argumentos que
> >serviram de sustentáculo a essas mesmas ideologias. Alguns argumentos
> >são interessantes. Por exemplo a defesa de uma visão pós-colonial,
> >refrescada com teorias pós-modernistas, pode ter o seu apelo. Obriga
> >a uma auto-crítica sobre o silêncio de certos intelectuais quando
> >houve clara deriva e manipulação das ideologias nacionalista e
> >pan-africanista, para fins autoritários e de exclusão. Outros são
> >falaciosos porque equacionam a Africa como apêndice da reflexão
> >antropológica ocidental, agora vestida de linguagem politicamente
> >correcta, justificando uma tendência africana para a desordem, o
> >conflicto ou formas de gestão do poder desagredadoras e acéfalas. Por
> >essa razão não é muito apropriado importar categorizações simplistas
> >de pós-modernismo ou pós-colonialismo.
> >
> >Seria um absurdo associar nacionalismo e pan-africanismo a
> >comportamento autoritário. Mário de Andrade reprovaria
> >veementemente. Mas também admitiria, e a sua vida é um exemplo disso,
> >que os dilemas da cidadania, inclusão já estavam presentes antes das
> >independências. Amílcar Cabral foi um dos mais elaborados na
> >articulação desses perigos (Lopes, 2005ª). O trabalho biográfico
> >exaustivo de Mário de Andrade sobre a obra de Cabral tinha como
> >preocupação primeira a disseminação desses alertas. Os trabalhos de
> >Claude Ake não deixam dúvidas sobre sua preocupação com o mesmo tema.
> >Na compilação "African Intellectuals" Thandika Mkandwire et al, fazem
> >uma acusação violenta à censura que essas ideologias acabaram
> >provocando, bem como ao papel de Estados intolerantes, que barraram
> >qualquer espaço ao pensamento autónomo (Mkandawire et al., 2005).
> >Porém, a associação de intelectuais a poderes autoritários deve
> >fazer-nos lembrar a cumplicidade de alguns deles.
> >
> >Este debate, curiosamente, está associado à definição de boa
> >governanca, como nos explica o mesmo Mkandawire. Durante o processo
> >de preparaçao dos estudos prospectivos do Banco Mundial sobre Africa,
> >em 1989, foram convocados vários académicos africanos. No prefácio da
> >obra final são reconhecidos como tendo sido os responsáveis por uma
> >viragem no pensamento apresentado no estudo em relação a questões de
> >governanca. No grupo havia nomes como Claude Ake, Makhtar Diouf e Ali
> >Mazrui. Esses académicos convergiam sobre o facto de que para superar
> >o desafio do desenvolvimento era preciso estabelecer relações
> >Estado-sociedade que tivessem as seguintes
> >características:
> >
> >1. - fossem desenvolvimentistas, no sentido de que permitissem uma
> >gestão da economia que maximizasse o crescimento económico, induzisse
> >mudanças estruturais, e usasse recursos de forma eficiente,
> >competitiva e sustentável; 2. - fossem democraticas e respeitosas dos
> >direitos cidadãos; 3. - e, socialmente inclusivas, providenciando
> >condicões dignas, e participação nos processos nacionais (Mkandawire,
> >2004).
> >
> >Boa governança deveria ser entendida como a implementação desses três
> >pilares, e não como depois acabou sendo popularizada.
> >
> >Qualquer uma destas características têm a ver com o pensamento
> >moderno. Ao comparar os renascimentos árabe e ocidental, Samir Amin
> >explica que a relação com a religião foi fundamental no sucesso de um
> >em relação ao outro. A laicidade do Estado, inspirada da Grécia
> >antiga, permitiu ao Ocidente uma modernidade emancipatória,
> >necessária para consolidar o capitalismo e a democracia. Já no caso
> >árabe o renascimento do século XIX nunca foi para além dos parâmetros
> >da religião muçulmana, não rompendo com conceitos tradicionais e
> >restrições de liberdade (Amin, 2004). Pode-se dizer que toda a Africa
> >batalha com problemas similares. Segundo Paulin Hountondji ao olhar
> >os ícones do passado têm de se reconhecer deficiências no seu
> >discurso modernista. "É preciso hoje apropriar-se dessa contribuição
> >de maneira lúcida, crítica e responsável" (Hountondji, 2004, 104).
> >
> >A popularização da democracia multipartidária, a partir do final dos
> >anos 80, modificou consideravelmente a paisagem política no
> >continente. Nos seus primórdios essa transformação foi provocada por
> >um conjunto de factores internos e externos: fim da guerra fria,
> >mudança das relações do continente em termos económicos e comerciais,
> >isolamento internacional crescente, ajustamento estrutural, pressão
> >para reformas institucionais, no campo externo; e no campo doméstico,
> >exasperação pela falta de alternância, urbanização e aumento
> >demográfico, juventude mais radical e desesperada, lutas pelos
> >direitos da mulher, desigualdade crescente, aparecimento de
> >movimentos cívicos.
> >
> >Como observador atento Mário de Andrade vivenciou estas
> >transformações nos seus últimos anos de vida, entre Maputo, Praia,
> >Paris e Lisboa. Preocupava-se com a restrição de liberdades na maior
> >parte do continente. A intolerância e a bajulação provocadas pelo
> >poder. Tinha horror ao cerimonial do poder. Mas nada lhe causava mais
> >desespero do que a exclusão de cidadania. Sendo ele mesmo uma vítima
> >dessa prática política podia observá-la como a hipocrisia mais
> >evidente do suposto caracter nacionalista e pan-africanista de uma
> >parte dos dirigentes africanos.
> >
> >O número de países excluindo na base de origem, raça, etnia, religião
> >ou filiação política foi-se estendendo. Se Amílcar Cabral fosse vivo,
> >a uma dada altura, teria sido destituído de sua nacionalidade
> >guineense. Como foram outros dirigentes nacionalistas importantes
> >vivos. Mário de Andrade contentou-se com nacionalidades de
> >empréstimo, praticando um pan-africanismo pragmático, que é cada vez
> >mais raro.
> >
> >O debate sobre a Ivoirité, é apenas o cume de um problema mais vasto
> >que afecta quase metade dos países do continente. Os intelectuais têm
> >de denunciar estas praticas e não podem esconder-se nas suas
> >lucubrações datadas. Cada vez mais se reconhece que o mundo têm uma
> >só atmosfera, economia, e também um direito internacional mais amplo,
> >uma comunicação mais fluída. Isso também presume a necessidade de uma
> >ética global. Uma ética que reconheça direitos de identidade baseados
> >no princípio de que o desenvolvimento é para trazer mais
> >oportunidades, ou seja mais liberdade de escolhas.
> >
> >Amartya Sen afirma que "a liberdade é central para o processo de
> >desenvolvimento por duas razões: 1) a razão avaliatória: a avaliação
> >do progresso têm de ser feita verificando-se primordialmente se houve
> >aumento da liberdade das pessoas; 2) a razão da eficácia: a
> >realização do desenvolvimento depende inteiramente da livre condição
> >de agente das pessoas" (Sen, 2002, 18).
> >
> >A medição dessas duas razões de Sen pode ser feita pelo grau de
> >cidadania e inclusão das sociedades modernas. Este é um debate
> >africano. Este é um desafio para os intelectuais africanos. Para que
> >filhos de Africa, como Mário de Andrade, não tenham que quemandar um
> >passaporte até à morte.
> >
> >Carlos Lopes, New York, Novembro 2005