segunda-feira, março 06, 2006

A nave dos feridos mortos desaparecidos e enlouquecidos

A revolta do navio Orion, da Marinha portuguesa, no dia 2 de Junho de 1973 foi decisiva para salvar a vida de centenas de soldados e população que fugiram dos bombardeamentos do PAIGC na batalha de Gadamael. Este episódio de desobediência a ordens de Spínola, desconhecido até hoje, é indissociável da resistência travada por meia dúzia de soldados no interior do aquartelamento de Gadamael. As duas histórias são aqui contadas por alguns dos seus protagonistas, como o comandante da Marinha Pedro Lauret, o coronel dos comandos Manuel Ferreira da Silva e o grumete Ulisses Faria Pereira. Eles são, com outros, os heróis desconhecidos de Gadamael.Passaram 32 anos desse dia 1 de Junho de 1973 mas o comandante Pedro Lauret ainda se recorda do arroz de tomate com peixe que estava a comer e que era também o jantar da guarnição da fragata Orion em missão no rio Cumbijã. Ali estavam, estacionados nas águas de um dos muitos rios da Guiné, a comer a tomatada de peixe e a beber cerveja gelada enquanto a noite começava a deitar-se sobre a mata de Cantanhez, tão bela quanto sinistra para os milhares de soldados portugueses que a olhavam como um santuário dos guerrilheiros do PAIGC. Foi à hora do jantar que o comandante, então imediato da embarcação, Pedro Lauret recebeu a indicação de que estava a chegar uma mensagem de "alto grau de precedência", ou seja, de António Spínola, comandante-chefe do contingente militar português na Guiné.
O jantar acabou e começava uma inesperada e marcante aventura nas vidas de todos os homens embarcados no Orion. Pedro Lauret entra na cabine onde a mensagem estava a ser descodificada e percebe logo que têm de preparar-se para levantar ferro. A mensagem trazia ordens do Comando Geral a determinar que a Orion subisse o rio e embarcasse uma companhia de paraquedistas que deveria conduzir para o porto de Cacine.
"Não eram dadas explicações mas de imediato nos apercebemos que algo muito grave se passava. Embarcar de noite uma companhia de paraquedistas sem qualquer tipo de protecção, naquele local, era muito arriscado", afirma Pedro Lauret.
A missão secreta chegou à hora de jantar
As ordens destapavam uma outra face da moeda: tirar uma companhia de paraquedistas da região iria diminuir a capacidade militar num local problemático. As missões da Marinha no rio Cumbijã tinham recomeçado em 1972 quando Spínola decidira reactivar cinco aquartelamentos na região de Cantanhez mas a operação não estava a dar resultados. O dispositivo militar tinha sido reforçado com companhias de tropas especiais, paraquedistas e fuzileiros, bem como diversas unidades do Exército mas mal punham o pé for a do arame farpado dos quartéis eram de imediato atacados. "Nunca se percebeu muito bem o objectivo desta reocupação", declara Pedro Lauret que recorda os meios navais envolvidos nessas missões no Cumbijã: a Orion, duas lanchas de desembarque médias (LDM), oito botes zebro, uma companhia de "fuzos".
O jantar acabou de imediato para toda a tripulação. O soldado Ulisses Faria Pereira, grumete electricista e moço da botica, foi um dos que perdeu a refeição. "Ao entardecer já a tripulação comia arroz de tomate com peixe frito. Lembro-me que estava de "quarto" e, por isso, só iria jantar depois da rendição. Jantar é uma forma de dizer... O arroz já estava feito em cimento e comi, à boa maneira portuguesa, uns peixinhos fritos com pão e umas cervejas."Foram dadas instruções aos "patrões" das LDM para seguirem em direcção a Cacine pelo canal do Melo, um pequeno braço de rio que liga os Cumbijã e Cacine, curto e seguro mas não navegável pelas embarcações maiores.
A Orion seguiu rio acima e embarcou os "paras" no local combinado. Foi uma operação morosa pois não havia nenhum ponto para acostar. Os soldados foram transportados em botes depois de montada uma linha de segurança.
Seriam umas oito da manhã de 2 de Junho quando a Orion chegou ao largo de Cacine. Foi a essa hora que também chegaram as notícias dos acontecimentos que tinham estado na origem daquela missão.Spínola proíbe auxílio a "cobardes"
O major Pessoa, do batalhão de paraquedistas que se encontrava em Cacine, subiu a bordo da Orion e explicou o que se estava a passar: a guarnição de Guileje, um quartel situado numa zona próxima da fronteira com a Guiné-Conakri, tinha sido alvo de ataques fortíssimos e o comandante da unidade, coronel Coutinho e Lima, sem reforços, sem apoio de tropas especiais, sem meios de evacuação de feridos e mortos, decidira retirar do quartel e evacuar todo o pessoal para Gadamael. Foi imediatamente preso e enviado para Bissau às ordens de Spínola. Gadamael estava agora debaixo de fogo intenso e de alta precisão.
O retrato da situação em Gadamael feito pelo major Pessoa era caótico. "As últimas informações indicavam que de um conjunto de efectivos de quase três companhias, só se encontravam no quartel a defender aquela posição cerca de 30 homens. Os restantes e a população encontravam-se em fuga pelas margens do rio", recorda Pedro Lauret.
A reacção de Spínola à deserção anunciava-se tremenda. O major Pessoa informou então os comandantes do Orion que tinha estado de manhã em Cacine e Gadamael por brevíssimos instantes e tinha proibido o socorro a quaisquer militares em fuga, considerando-os "uns cobardes"."Vou buscá-los nem que seja de canoa"
Apesar das ordens de Spínola, a disposição do major Pessoa era outra. "Informou-nos da urgência de ir socorrer esse pessoal devido ao elevadíssimo risco em que se encontrava. Frisou-nos que se não estivéssemos dispostos a ir contra a determinação do general ele próprio tentaria recuperar os militares, nem que fosse em canoas", afirma Lauret.
A determinação do major Pessoa, que volvidos trinta e dois anos não quer falar sobre os acontecimentos de Gadamael, percorreu todo o navio. O Orion partiu de imediato em auxílio dos tropas fugitivos e nada comunicou ao Comando da Defesa Marítima. Avançaram as LDM porque havia muitos anos que as LFG não subiam o Cacine para lá da marca da Lira, um sinal com reflector instalado no rio e já próximo de Gadamael. A verdade é que não eram conhecidas as "condições de fundo" para lá dessa marca, mas o navio aproximou-se do quartel o mais possível, sem problemas.
Do ponto onde estava a Orion podia avistar-se uma antena de grandes dimensões e era um evidente sinal da proximidade do inimigo que punha também a Orion na linha de fogo. De imediato foram desembarcados os paraquedistas nos zebros e as LDM começaram a percorrer as margens a recuperar os soldados que andavam perdidos.
"À noite, a coberta das praças estava repleta de feridos"
Havia feridos e mortos. Desaparecidos e enlouquecidos. No convés foi instalado o mais improvisado dos hospitais para assistir aos feridos ligeiros. Os que tinham ferimentos mais graves foram colocados na coberta dos "praças". Dentro do possível foi servido pão acabado de cozer e cerveja gelada.
Lá fora, nas águas do rio, os zebros percorriam incessantemente as margens enquanto as LDM começavam a fazer uma "ponte marítima" em direcção a Cacine para levar os sobreviventes para um lugar mais seguro e os feridos para uma assistência mais eficaz.
"Penso que teremos recuperado cerca de 300 a 400 pessoas, entre militares e população", diz Pedro Lauret, evocando uma imagem que nunca mais o abandonou: "À noite, a coberta das praças estava completamente repleta de feridos, não havendo lugar para as praças se deitarem".O relato do grumete Ulisses Faria Pereira é feito de rajada, como se quisesse deitar qualquer coisa cá para fora. De resto, este foi um episódio silenciado ao longo de 32 anos. "Ao longo da manhã foi recebido a bordo um número elevado de feridos, a quem eram prestados os primeiros socorros, administrados pelo enfermeiro Abrantes, auxiliados pelo "moço da botica", que por sinal era eu... e que, posteriormente, eram enviados para terra, para terem uma assistência melhor e proceder à sua evacuação via aérea para o hospital de Bissau", diz.
G 3 ficaram abandonadas a bordo do Orion
Nessa noite de 2 de Junho de 1973 o cenário não podia ser pior. A maré baixa criou uma massa de lodo que dificultava o desembarque dos feridos. Dentro do barco estavam esgotadas todas as reservas de soro, compressas, desinfectantes. Foi então enviada uma mensagem para Bissau pedindo reabastecimento mas temendo o pior face ao conhecimento que havia das ordens de Spínola. Na manhã seguinte, porém, um avião da Marinha largava em Cacine tudo o que tinha sido pedido.
O trabalho da Orion continuou nos dias seguintes, fazendo evacuações e começando a retirar do teatro de guerra os paraquedistas feridos. A bordo jaziam a um canto dezenas de espingardas G3: o princípio de nunca abandonar a própria arma já não tinha qualquer sentido. O moral daquela tropa estava abaixo de zero.
Para a história fica o silêncio da hierarquia. Nunca o Comando da Defesa Marítima da Guiné se referiu à desobediência do Orion, do seu comando e tripulação, nem estes sofreram qualquer punição. Na memória ficaram imagens que os protagonistas ainda hoje retêm: em Cacine, por aqueles dias, vivia um Exército enlouquecido, desarticulado, abandonado pela hierarquia, a deambular por entre os seus mortos.
O diário que nunca existiu
O soldado Ulisses Faria Pereira, grumete electricista, moço da botica no navio Orion e ex-seminarista, tinha a "mania da escrita". Todos os dias escrevinhava umas notas sobre a sua comissão militar. Todavia, nunca organizou as suas notas num diário e acabou por perdê-las. Mas se o tivesse feito ele começaria por rezar assim:
"Maio de 1973
Já passaram 12 meses e a comissão decorre com toda a normalidade apesar de notar, conversa aqui, conversa ali, que a situação militar está a degradar-se. A nossa rotina é feita dos habituais "cruzeiros" pelo Cacheu. O Cacheu merece redobrada atenção. É muito estreito, tem muitas clareiras e o navio torna-se um alvo fácil. A navegação do nosso barco é feita com a guarnição em "bordadas", ou seja, através de equipas constituídas por metade do pessoal que cumpre um turno de seis horas comandada por um oficial e um sargento. A outra metade descansa.Frequentemente fazemos a navegação em posto de combate devido a informações sobre a actividade do inimigo. E varremos as margens a tiro. Seis homens são destinados às peças de artilharia antiaérea, duas "Bofors" de 40 mm, uma a ré e outra avante. Nas missões de patrulhamento, quer de dia quer de noite, são colocadas na ponte, tanto a bombordo como a estibordo duas MG42. Na ponte há ainda um morteiro manobrado por um fuzileiro. Pois foi num destes "cruzeiros", há dias, que já vimos como é má a situação.
A Norte, o PAIGC atacou Guidage e pela primeira vez se sussurrou entre as tropas que usaram mísseis. E também que foi abatido um avião a hélice num dia e um helicóptero no dia seguinte. Nós estávamos aí perto. A tensão foi enorme. Batíamos o rio a toda a hora, noite e dia. À noite em ocultação de luzes. Chegaram, depois, notícias do sul também muito más. Guidage, Guilege e Gadamael começaram a ser os nomes da morte entre a tropa. O que mais depressa chega aos ouvidos dos soldados é a dificuldade de evacuação de feridos. Recebemos então a missão de embarcar uma companhia de paraquedistas na zona de Bolama e deslocá-los para Gadamael com o objectivo de prestar auxílio às unidades que flageladas pelo inimigo.
Percebemos logo que aquela não iria ser mais uma missão de rotina quando soubemos da possibilidade de o massacre ser de tal ordem que havia militares a fugir para as bolanhas em redor de Gadamael. Após o embarque, as forças especiais foram-se acomodando no convés. Apagámos as luzes e fizemos rumo para Cacine.
Ao longo das primeiras horas da manhã foram recebidas a bordo dezenas de homens feridos. Nestes dias, o Orion funcionou não como lancha de fiscalização mas como um navio hospital, de primeira linha, mas sem médico e apenas com um enfermeiro e um "curioso" que era eu."
Trinta e um anos depois sobram as memórias de uns tempos de chumbo mas também de uma experiência decisiva na vida de Ulisses, natural de Alboritel, concelho de Ourém, há muito instalado em Almada onde é funcionário da inspecção tributária. Hoje até é capaz de se rir quando se lembra dos truques que a sua imaginação criou para não ser incorporado para a Guiné – como responder tudo mal nos testes do curso da Marinha – e de como o tiro lhe saiu pela culatra. Logo a ele que ficou com a especialidade de electricista sem que tivesse qualquer vocação para tratar de fusíveis e tomadas. Foi excluído do curso mas acabou incorporado no navio S. Roque, embarcação dos mergulhadores da Marinha. Daí até à Guiné foi o tempo de um fósforo a arder. Quando pôs o pé em Bissau era um recruta em prontidão para combater sem que alguma vez tivesse tido contacto sério com armas de fogo...
Jorge Amado e Gorki no navio que atacou Conakri
Quando Pedro Lauret, então um jovem guarda-marinha de 22 anos, chegou ao Orion, em Setembro de 1971, ainda por ali pairava a memória fresca de uma operação secreta. O navio tinha comandado a incursão militar contra a Guiné-Conakri sob a mão de ferro do comandante Alpoim Calvão, na mais polémica acção de guerra da campanha colonial portuguesa. Nos porões ainda havia umas boas caixas de champanhe francês e de whisky velho.
O ambiente a bordo era, por assim dizer, "agressivo", no sentido em que era profundamente marcado pela lógica pura da guerra. "Foi minha primeira preocupação modificar o ambiente e, dentro das limitações de quem vive em teatro de operações, criar dinâmicas antifascistas e anticoloniais", recorda aquele que em breve seria imediato.
Na bagagem Lauret levava uma formação política na linha das actividades conspirativas de sectores da Marinha contra o regime. Desde 1968 que se organizavam na Marinha movimentos com finalidades políticas e que estavam centrados nas actividades associativas, culturais e técnico-profissinais do Clube Militar Naval. Um desses movimentos foi o que pretendia instituir um curso de natureza associativa e sindical que acabou proibido por despacho governamental em 1972. Outro, mais importante, foi o que fomentou clandestinamente uma plataforma política contra o regime e a guerra. Havia debates sobre o marxismo e o estruturalismo com convidados como Maria Lamas e Augusto Abelaira.
Eram dinamizadas actividades culturais nas unidades, como jornais de bordo, bibliotecas e convívios desportivos. Foram ainda criadas "comissões de bem-estar", órgãos previstos na Ordenança do Serviço Naval e que juntavam na mesma unidade oficiais, sargentos e praças, servindo de conselho do comandante em vários domínios da vida nas embarcações.Uma das estratégias de aproximação entre oficiais e praças assentava em actividades lectivas para estes. Assim, foram criadas em algumas unidades pequenos núcleos escolares adquirindo maior importância os que se constituíram no próprio Ministério da Marinha e numa colectividade recreativa da Cova da Piedade.
Pedro Lauret, enquanto jovem cadete, relacionou-se mais com este mundo clandestino o que teve uma influência decisiva na sua formação política. Quando chega ao Orion leva já no espírito esta necessidade de trabalhar para tentar mudar alguma coisa no rumo que a presença militar portuguesa em África levava.
Numa curta passagem por Lisboa, em licença, recebe no aeroporto uma biblioteca de bordo. A entrega é feita pelo seu "filho da Escola", mais tarde comandante Cambraia Duarte, a quem pedira para que lhe comprasse os livros. Os títulos são sugestivos quanto aos objectivos: "Os subterrâneos da Liberdade", "A Mãe", de Gorki, e "Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes.Começam, assim, as leituras a bordo do Orion e também as aulas a alguns praças, que terminaram com sucesso exames do 2ºano do liceu. "Aos poucos o ambiente foi-se tornando muito diferente do que encontrara. Era um equilíbrio difícil para quem tem de manter a sua unidade em muito elevada prontidão para combate mas contei com apoio total do meu comandante de então, Coelho Rita,", declara Pedro Lauret. Em sua opinião, aliás, a mudança de ambiente no navio acabou mesmo por ser um factor decisivo para a tripulação viesse a ter a capacidade moral para desobedecer às ordens do Comandante-chefe, Spínola, quando o que estava em causa era tão só a solidariedade com aquilo a que chama "o povo português fardado".
Histórias reais recordadas 32 anos depois
O soldado da Madeira que só morreu em Bissau
"Recordo um soldado da ilha da Madeira que foi recolhido na bolanha e o seu estado de saúde era tão grave, o seu corpo estava tão cravado de estilhaços, que eu só conseguia ir tirando um a um da cara com uma pinça. Estava sujo de lama e o enfermeiro teve a ideia de o meter debaixo do chuveiro. Quando lhe tirava as calças, porém, é que verificou que lhe faltava parte da perna e da anca devido à deflagração de uma granada. O pobre soldado estava completamente sem sentidos, talvez, quem sabe, em estado de pré-coma. O éter utilizado na sua lavagem criou uma atmosfera tão inflamável que um dos camaradas nossos ao entrar na coberta a fumar deixou cair um pouco de cinza no balde onde depositávamos as compressas e o algodão, provocando uma explosão na coberta. O gerador foi abaixo criando uma situação de pânico. Nesse momento o soldado da Madeira levantou-se e tentou procurar um abrigo. Mais tarde, saiu do navio vivo, foi transportado para Cacine, acabando por morrer em Bissau... por falta de assistência, dizia-se por lá."Uma bala por cima do coração
"Para a noite estava reservado um dos episódios mais dramáticos. Deu entrada a bordo um guineense, guia das nossas tropas, que tinha uma bala alojada acima do coração. Este homem pesaria entre 110 a 120 quilos. Foi-lhe administrado o último balão de soro e o seu estado de saúde era muito preocupante. O comando entendeu evacuar o homem para que este não morresse a bordo. Para o retirar da coberta – o acesso era feito através de uma escotilha – foram necessários oito homens que o colocaram numa das lanchas. Esta embarcação navegou o que pôde no sentido das luzes do quartel mas depois foi necessário voltar a colocá-lo num zebro por causa da maré baixa. O zebro dirigiu-se a terra mas a partir de certa altura já não era possível navegar. O homem foi então transportado em maca por quatro elementos da tripulação, o cozinheiro, um artilheiro, o escriturário e o electricista, ou seja eu. O enfermeiro segurava o balão de soro. Quando saltámos do bote ficámos com água pela cintura mas o fundo parecia não ser muito mole. Todavia, quando retirámos a maca do bote, com o peso do ferido, pura e simplesmente não nos conseguimos mexer dali. Por duas horas travámos uma luta com um campo de lodo, afundados quase até ao pescoço e com a maré a subir. Por fim, o enfermeiro, já exausto, larga o balão de soro em cima do ferido e nada para terra, junto ao quartel. O escriturário quase já não se via na água. Só ao fim de três horas foi possível passar um cabo a partir de terra e puxar a maca e os homens que a tinham transportado.
Quando chegámos já não havia lugar para depositar os mortos
"Quando chegámos a terra exaustos o cenário era de dor. Chorava-se, gritava-se, havia ataques de histerismo entre os soldados que ali se encontravam refugiados, aguardando a chegada dos companheiros que estavam perdidos nas bolanhas e que tinham sido recolhidos por nós. Chegados a terra o cheiro era nauseabundo uma vez que já não havia sítio para depositar os mortos. O destino era a capela e aí aguardavam urna. Os primeiros tinham sido ali colocados já havia cinco dias. Só regressámos ao Orion passadas umas horas. No convés do navio misturavam-se soldados e população também resgatada. A guarnição não se conseguia movimentar. Um verdadeiro inferno. Mais tarde, sei que quando embarquei no aeroporto de Bissalanca de regresso a Lisboa trazia na mala a convicção de que não mais iria regressar aquela terra. Que iria fazer como muitos outros e fugir para França. Passados trinta dias, não consegui."
Ninguém entregou a condecoração ao coronel
Eduardo Dâmaso
O coronel Ferreira da Silva resistiu com um punhado de homens ao avanço do PAIGC sobre Gadamael. Sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e com poucas munições. Foram louvados e o coronel chegou mesmo a ser condecorado por Carlos Fabião. Mas nunca recebeu a Cruz de Guerra.
Foi ao pôr do sol do dia 1 de Junho de 1973 que os três ou quatro soldados que sobravam da tropa comandada pelo recém-chegado capitão dos comandos Ferreira da Silva ficaram sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e sem munições de morteiro ali por perto. Foi nesse dia que o hoje coronel reformado e advogado Ferreira da Silva conquistou uma das suas mais vivas memórias da guerra colonial e também uma condecoração, a Cruz de Guerra, que nunca chegou a receber.
Ferreira da Silva, que antes tinha estado em Angola, acabara de poisar em Gadamael no dia 31 de Maio depois de uma nomeação relâmpago para a chefia do Comando Operacional 5 (COP5). Iniciara a comissão na Guiné em Dezembro de 1971, nos Comandos Africanos, e alguns meses depois foi ferido com gravidade. Evacuado para Lisboa, onde convalesceu, regressou à Guiné a seu pedido em Janeiro de 1973 e foi colocado em Bolama a comandar uma companhia de instrução.
A 31 de Maio, pelo meio-dia, chega ao quartel de Gadamael que vivia sob as brasas do episódio da retirada do capitão Coutinho e Lima do quartel de Guileje, situado a cerca de oito quilómetros do primeiro. Ferreira da Silva só teve tempo para um breve contacto com os dois comandantes de companhia ali presentes. Por volta das 15.00 começaram as flagelações com mísseis, morteiros e canhões sem recuo. Nesse dia houve um morto e um ferido.

Chuva de 18 granadas de três em três minutos
Pelo amanhecer do dia 1de Junho começou o mais crítico de todos os dias da batalha de Gadamael. As granadas dos morteiros 120 eram disparadas a um ritmo de 18 de três em três minutos. Logo pelas dez da manhã uma granada acabou com o pelotão de artilharia. Três mortos e 11 feridos deixaram o pelotão inoperacional. Gadamael fica reduzido ao morteiro 81 que não tinha alcance suficiente. Momentos antes tinha aterrado no quartel um helicóptero que transportava o general Spínola mas este teve de ser empurrado para dentro do aparelho, que levantou voo de imediato. O silvo das granadas a sair foi ouvido no quartel e os rebentamentos ocorreram no ponto de aterragem do helicóptero.
Num quartel com poucos abrigos e um elevado número de militares ali concentrados os mortos e feridos foram aumentando. Na contabilidade feita ao final do dia eram registados 8 mortos e 27 feridos.Aos poucos foram tentando fazer evacuações de feridos por barco mas o fogo intenso de cada vez que se dirigiam ao cais dificultava muito a acção. Ao princípio da tarde uma granada destruiu o posto de rádio e feriu os dois comandantes de companhia. "Após a evacuação dos capitães fiquei sem elementos de ligação pois não conhecia ninguém em virtude de ter chegado na véspera", afirma Ferreira da Silva.
Num cenário de desespero e com poucos abrigos os soldados começaram a andar junto às valas de defesa até à aldeia que ficava próxima e não estava a ser atacada. Ferreira da Silva, atarefado com as evacuações só quando o furriel Carvalho, do morteiro 81, lhe foi dizer que já não tinha granadas e que só se encontravam três ou quatro militares na zona crítica é que se apercebeu que a defesa do quartel estava a reduzida a um punhado de homens.
A bravura do cabo Raposo
Quem deu algum ânimo aos poucos que estavam foi desde logo o 1ºcabo escriturário Raposo, açoriano, que se voluntariou para fazer o arriscadíssimo trajecto até ao paiol. Enfiou-se numa Berliet e foi buscar munições debaixo de fogo intenso. Gadamael estava cercado, sem artilharia, sem apoio aéreo, sem capitães, sem médico, sem rádio, sem munições de morteiro 81, tinha por companhia apenas três ou quatro militares na linha da frente.
A bravura do cabo Raposo e do furriel Carvalho, porém, foi um encorajamento para todos. Com o morteiro 81 municiado pelas granadas trazidas na Berliet, com uma metralhadora que conseguiram montar e os tais três ou quatro militares passaram o resto da noite de 1 para 2 de Junho a lançar umas morteiradas e umas rajadas de metralhadora de tempos a tempos. Só no dia 2 de Junho é que se apercebeu que uma parte significativa dos militares que tinha fugido para a tabanca se tinha deslocado com a população para junto do rio Cacine.
Nos dias seguintes a situação melhorou mas só num dia houve seis mortos entre os paraquedistas que entretanto tinham chegado. O comando foi assumido pelo oficial Manuel Monge, antigo chefe da Casa Militar de Mário Soares e hoje governador civil de Beja. Ferreira da Silva passou a adjunto de Monge, oficial mais graduado. "A 31 anos de distância saliento a acção dos paraquedistas, do furriel Carvalho e do cabo Raposo, do major Monge com quem partilhei, durante meses, aqueles momentos difíceis, mas que conseguimos ultrapassar", recorda o coronel que nunca recebeu a Cruz de Guerra.