segunda-feira, março 19, 2007

Luis Pacheco em entrevista


Luíz Pacheco outra vez


São raras as vezes que se fala do Luíz Pacheco mais raras ainda as entrevistas. Dia 9 de Janeiro coloquei um post que alertava para uma entrevista por ele dada ao DN, hoje fiquei a saber pelo blog Ene Coisas de outra que saiu na Pública dia 28 de Março. Vale a pena ler e conhecer alguns pontos de vista de alguém que não tem medo de dizer o que realmente pensa (por mais inconveniente que seja).

Apesar de extensa leiam a entrevista.

"Isto de estar vivo
Ainda um dia acaba mal. É uma frase do Manuel da Fonseca. Para o Manuel acabou, coitado. Ele caiu de uma escada abaixo, os amigos estavam à espera dele no café, ele não aparecia, foram lá a casa dele, e deram com ele inanimado. Depois ficou em coma profundo e morreu daí a uns 8 dias, talvez.

Isto [o lar] não é uma casa alegre. Não pode ser. É o terceiro lar onde estou e já sei que não há hipótese de arranjar melhor. Agora, para pagar isto é que me vejo um bocado aflito, porque eu não tenho dinheiro que chegue para isto. Como é que faço? Olhe, faço os possíveis. Isto custa para cima de mil euros por mês. O que eu recebo não dá para estar descansado. Tenho uma situação muito incerta.

Tenho um subsídio vitalício de 120 contos por mérito cultural. Há muita gente que tem. Agradeço isso ao Alçada Baptista. E ao Balsemão. Foi o Balsemão que inventou um decreto, que era o do mérito cultural, para legalizar estas pensões. O meu subsídio em princípio é vitalício, é um subsídio pelo passado. Mas com essa maluca das Finanças - por acaso até é gira, é muito feia mas é gira, é uma mulher a sério, não é o Peixoto, aliás o Barroso! - nunca se sabe. Mas não, porque se uma pessoa tem mérito cultural não o perde por causa da Ministra das Finanças.

Eu até estou um bocado resguardado. Enfim, estou bem aqui. Este quarto é um bom quarto, apetece trabalhar. Eu é que já não estou muito capaz de trabalhar, porque a memória, a vista, tudo isso inibe um tipo. Já não leio os jornais, não consigo. A minha ligação com o mundo é a rádio.

As minhas doenças, sei que está tudo mais ou menos controlado. São coisas antigas, tenho a minha medicação. Moralmente depende muito dos dias. Sou muito influenciável por qualquer coisa, por qualquer dia de sol. Se é bom? Ó faxavor! Você nem faz ideia!

Ai fulano de tal está cheio de papel? Quero lá saber! Qualquer dia morre!

O Antigo Regime

Devia ter ido falar com o Vasco Gonçalves! Não o ouviu hoje de manhã a falar? [numa sessão de comemoração dos 30 anos do 25 de Abril] E ele tem razão, porque, de facto, o Mário Soares foi um agente terrível da contra-revolução. O Vasco não lhe perdoa. Eu não sabia que ele ainda estava vivo. Ele já deve estar muito velhote, coitado.

O fascismo era péssimo. Mas agora, por parte da malta nova, não há a noção do que era. Nada. Noção nenhuma. E há esses rapazinhos, que são uns remanescentes - como o Pereira Coutinho, esse tipo que escrevia no Independente e que agora parece que escreve no Expresso, enfim, gente de más famílias. A reacção está aí com toda a força. Talvez ainda não com a força que eles queriam. Nova direita? Extrema direita!

Antigamente não era fácil. Havia um pavor, que era justificado, mas esse pavor, essa perseguição, insidia mais sobre certas classes. Certas classes... trabalhadoras. Eu recordo-me que uma noite fui ao Barreiro, e fiquei lá. Fiquei lá numa pensão manhosa, barata, e de noite fui atacado, não pela Pide mas por percevejos. Ó faxavor! Seja como for, havia então patrulhas da guarda republicana a cavalo toda a noite. Isto foi talvez por volta de 1955 ou 56. Os intelectuais eram de uma classe média, não havia muitos que fossem da classe operária.

Fui para o liceu em 1936, foi o primeiro ano da Mocidade Portuguesa. No Camões, eu tinha professores idosos, gente formada pelo regime republicano. Tal como depois do 25 de Abril houve muita gente que entrou para as universidades, gente que eles foram buscar - o Piteira Santos, o Mário Dionísio, etc. -, também na altura eu tive como professores no Camões tipos de um radicalismo republicano terrível. Havia um tipo que era professor de matemática. Quando chegava o contínuo com uma circular da Mocidade Portuguesa para ler, qualquer coisa desportiva ou assim, ele dizia que era ele que lia, e lia aquilo com um tom importante. Não deixava o contínuo ler, e lia aquilo com uma entoação e com um ar extraordinários. Já professores como o Câmara Reis, que era professor de literatura portuguesa, era um tipo nitidamente do contra. Ou o João de Brito, que ensinava latim. Esses escolhiam os textos e davam aulas do contra.

Em casa eu não tive ambiente familiar do contra, não havia ninguém que me informasse. O meu pai não ligava nenhuma a isso. Mas eu fui abrindo os olhos, também graças a esses professores que indicavam leituras. Os professores eram muito importantes. Eu, de professores fascistas só tive um, e era um fascista um bocadinho moderado. Ensinava latim mas não sabia latim. E havia os professores padres. Tive um professor que era um espanto, era o Monsenhor Damasceno Fiadeiro, que tinha sido confessor da rainha Dona Amélia, era cónego da Sé, e era um tipo impecável. Não fazia propaganda católica nenhuma. Outro foi o Costa Nunes, que era professor de canto coral. Esse também era um tipo engraçado.

A Mocidade Portuguesa era uma coisa extremamente idiota, era uma imitação, uma coisa inspirada no fascismo italiano. Mas aquilo era muito reduzido. Quem quisesse as benesses que eles davam - cavalos para treinar, passeatas no rio - até podia ser uma coisa boa. Para os outros era uma grande palhaçada. Nós éramos voluntários mas aquilo era obrigatório. Os liceus não eram mistos, como agora. E mais: não se podia chegar a um liceu de raparigas. Depois houve uma fase um bocadinho diferente. O país acordou com o Norton de Matos. Agora há por aí uns gajos que se gabam muito de prisões e torturas. Que as houve, claro. Ai o Pacheco Pereira diz que a Pide não torturava? A ele não!

Escrever

A diferença de gerações não perdoa. Você, por exemplo, você não escreve para mim. Os autores de hoje têm uma visão do mundo muito diferente de nós. As viagens, que agora são muito facilitadas, transformam as pessoas. É outro mundo, este agora.

A primeira coisa que escrevi para um jornal foi em forma de silogismo e cortaram-me a premissa. Eu fiz aquilo com muito cuidado mas devia ter feito com mais cuidado ainda. Tu antigamente nunca sabias se aquilo que tu escrevias seria publicado ou não. Geralmente faziam os cortes com o lápis azul. Eu conhecia aquela malta toda da comissão de censura à imprensa, eram coronéis, eram capitães, gente sem qualquer formação política, acho eu, gente muito pacata embora uns grandes filhos da puta. Depois desses apareceram uns intelectuaizinhos de direita, muito mais exigentes e muito mais sabedores. Era gente que vinha da Católica, uns formados, outros não. O embate foi o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores, que era uma coisa nitidamente do fascismo mas muito minada, muito minada pelo Partido Comunista. Aquilo foi encerrado por causa de uma filha-da-putice muito grande de um gajo que já morreu que era o Alexandre Pinheiro Torres. Era um tipo que como tinha ido para Inglaterra se permitia aqui um certo à vontade, tinha lá um emprego numa universidade inglesa. Esse tipo pertenceu a um júri da SPE em que deram o prémio ao Luandino Vieira, que eles não sabiam que estava no Tarrafal. Quando investigaram onde estava o autor, descobriram que estava no Tarrafal. A que mais se dedicava essa Sociedade de Escritores? Essa é boa! Ao de sempre: a dar uns dinheiros.

Os gajos que viviam da literatura não se atreviam a escrever romances muito rebarbativos. Porque uma edição ainda custa dinheiro. Havia gajos que se governavam de escrever: o Alves Redol, o Namora. O Alves Redol era um escritor profissional, que vivia do que escrevia. Ora, não ia arriscar o seu modo de vida com um romance muito directo, não é? Nem o editor publicava. Embora, de vez em quando, dessem uns prémios a uns tipos do contra. Havia era uns gajos que negavam os prémios, que se recusavam a receber os prémios. E também havia aqueles que recebiam prémios e que gostavam de se gabar. O meio era muito pequeno, e ainda é.

Você acredita naquelas pessoas que agora dizem que não passam sem escrever? Pois é claro que é um lugar-comum! E é uma aldrabice! Desde quando é que uma pessoa não vive sem escrever? Essa está muito boa! Ouça, eu não tenho obra escrita de grande fôlego, o que eu tenho é sobretudo uma experiência de editor. Acontecia que um gajo me pedia para publicar qualquer coisa, e eu forjava um livro. São textos pequenos, eu nunca consegui fazer um romance. Nunca tive um tempo livre, seguido, sem chatices, sem interrupções. Um romance requer uma certa estabilidade. Mas não estou muito preocupado com a imortalidade.

O Lobo Antunes é hoje o escritor mais internacional de Portugal. E o Saramago, embora diferentemente. São autores que já não escrevem para cá, escrevem para lá, para os leitores dos outros países. Se um tipo escreve para Portugal, em português, geralmente cai naquilo que é o bonito estilo, o aprimorado. O Aquilino Ribeiro, por exemplo, tinha um estilo muitíssimo rebarbativo, com palavrões provincianos, palavras vernáculas, arcaicas, o que dava àquela prosa um certo encanto. E daí, talvez por isso, tanto o Saramago como o Lobo Antunes têm de ter uma prosa muito corriqueira.

Para escrever bem, para estar atento - por desejar está-lo - é preciso um tipo ler muita coisa.

Sim, o trabalho do Lobo Antunes interessa-me. Tem muitas qualidades. Tem métier, já escreveu alguns 15 romances, são anos de escrita. Esse também diz que não pode estar sem escrever, mas esse é verdade. Mas também é maluqueira. Ele tem muita pancadinha. Há livros do Lobo Antunes de que eu gostei porque me tocavam. Gostei deles por bairrismo, porque ele falava de Benfica, e da Avenida Grão Vasco, da palmeira ao pé dos correios. O Lobo Antunes é um tipo um bocado sentimental, é um tipo um bocado arrapazado.

A certa altura, eu estava um bocado isolado, porque quem não andasse muito metido - não era bem ser militante, era ser próximo - com o PCP não tinha saída. Eu percebi que isolado não ia lá. Então inventei uma editora, para ter um espaço meu, embora eu não publicasse logo na Contraponto. Isso foi mais tarde. A Contraponto começou por ser uma revista. Era uma revista gira. Você nunca a viu? Também só saíram duas. E aquilo era uma coisa minha, ali era eu que mandava. Em relação aos autores que editei, isso é muito contingência, porque a gente edita o que está próximo de nós, o que vem ter connosco. O grande critério, o político, o estético, era um: os gajos do Estado Novo não entravam. Quando eu comecei a editar, que foi em 1950, tinham já aparecido os surrealistas, que era uma linguagem muito mais revolucionária do que a que era cá usada. Era a linguagem do Paul Éluard, do Aragon, dessa gente toda de lá fora. O surrealismo em França teve sempre uma espécie de luta com o PC. Entravam, saíam, eram expulsos, voltavam a entrar. A determinada altura eles tinham uma frase que era: o Surrealismo ao serviço da revolução. Mas a revolução para eles era mais o Trosky, era a revolução permanente.

O que apareceu aqui era uma coisa de cafés. Depois, os cafés da Baixa passaram a ser bancos, e a actividade deslocou-se para o Saldanha. Mas os cafés não eram igrejas surrealistas. As pessoas reuniam-se ali como podiam reunir-se noutro sítio qualquer. Criam-se hábitos, um gajo em vez de ir a vários cafés, vai sempre ao mesmo. E há outros que fazem o mesmo. Ora, criou-se uma lenda em volta da cultura dos cafés, mas aquilo não era nada organizado. Era uma coisa espontânea. O café Gelo, por exemplo, transformou-se num mito. A malta do Gelo, dizia-se que era uma malta terrível, uma malta iconoclasta. Era o Cesarini, o Herberto, o Couto Viana, o Raúl Leal. Defronte do Gelo havia o café Restauração. Aí iam os tipos mais velhos. E eu, de repente chateava-me com os mais novos e ia para os velhos.

Eu fazia edições muito pequenas, não dava para mais. Edições que hoje são raríssimas e muito valorizadas. Por acaso isso dá-me um certo gozo. Eu vendia muitos livros a gajos que nunca tinham comprado um livro na vida. Eu cheguei a vender um livro a um tipo que tinha um talho, e esse gajo guardou o livro e agora fez um negócio maluco. Não lia? Pois claro que o gajo nunca tinha lido nada na vida!

Despojos de gente

Lares, com este é o terceiro. São casas onde não se compra um jornal. E agora, como há a televisão, a malta acha que anda toda muito informada. O convívio com as pessoas que estão aqui? Não há, não existe. Uma conversa? Deixe-me rir! Não abrem a boca! Isto já não são pessoas. Isto são restos de pessoas. Havia aqui um tipo a quem eu salvei a vida - enfim, salvei a vida por mais uns tempos. Eu de noite como não durmo, ouvi o homem chamar. E eu fui lá e ele pediu-me para chamar alguém. Eu toquei na campainha e ele foi logo para o Hospital de S. José. Estava muito aflito. Bom, depois de estar no hospital o tipo voltou e foi com ele que aprendi a jogar à bisca dos 9. Mas isso é um caso único! Em Palmela, na altura em que eu lá estava, havia uma gente muito viva. Dançavam, namoravam e havia um grupinho de jogo.

Como diz? Que estou deslocado aqui? O que eu estou é enterrado! Ouça, eu já não saio daqui. Eu já vi que os defeitos destes gajos dos lares não são defeitos: são atributos. O que se passa aqui não é pior do que aquilo que se passa em Palmela ou no Montijo. Mas ouça: você não venha para aqui nunca! Aliás, não vá para lado nenhum. Aí é que está o problema: perdeu-se o hábito das casas de família. Pai, mãe, filhos, avós, tias velhas. As casas agora não permitem isso. Eu nasci numa casa com 11 divisões, e cabia lá muita gente. Agora num T1, isso não dá nem para um casal e dois filhos.

Este abandono não é bem abandono. É antes o chamado descartável. Hoje em dia, um casal normal que tem dois filhos, vai-se concentrar nesses dois filhos. Nem ele nem ela querem lá a velhada. E mesmo que quisessem, onde é que eles a punham? É claro que antigamente nem toda a gente tinha casarões. Como é que faziam os mais pobres? Viviam juntos! Esta coisa dos lares, isto é uma coisa americana. Por que é que chamam lar? É um eufemismo! O lar não é substituível.

Ouça, faz mais falta os jornais e a leitura do que a visita. Mas a visita é sempre uma alegria. Só que depois uma pessoa fica muito cansada. Eles dizem que eu sou a pessoa que tem mais visitas e mais correio. Quando cheguei a esta casa, assim que comia ia para a rua. Ia para o jardim, ou andava a passear nos carros da Carris. Não, não sinto falta. Ouça: uma pessoa tem de que mentalizar. É outra coisa, é outra vida. A cada dia que passa vejo menos. Qualquer dia fico cego de todo. Acho que primeiro se vêem umas sombras.

Se há uma diferença entre as mulheres e os homens, aqui dentro? Não! Está tudo badalhoco! Está tudo taralhoco! Há aqui uma criatura, uma mulher alta, grande, que fazia o corredor de andarilho durante toda a manhã. Ela deve ter tido uma congestão, porque há uma perna que não mexe, há uma perna que puxa a outra. Eu ouvia o arrastar do andarilho, para lá e depois para cá. E depois ela aparecia e desaparecia. E depois aparecia outra vez. Eu lembro-me de quando ela foi ao casamento de uma neta, toda aprimorada. E ela agora passa o tempo deitada na cama, de lado. Isto dos lares é terrível porque uma pessoa não só está a morrer aos bocadinhos como está a ver morrer aos bocadinhos. Quem tenha um bocadinho de atenção começa a notar que há muitos que se vão afastando, cada vez mais, que se vão ausentando.

Eu estive para ir para um lar que tinha velhos e crianças também. Talvez fosse um lar com uma escola anexa, não sei bem. Isso é uma coisa que dá muita vitalidade. Aqui, por exemplo, são proibidos os animais. Mas os animais dão muita alegria aos velhos. Eu já cheguei a ter aqui no quarto 4 pombos! E tive aqui uma espécie de pardalito que era um bichinho diferente, que vinha aqui todas as manhãs. Eu já desisti da vida muitas vezes, mas o instinto de conservação é muito forte. Havia uma coisa que me animava que era o comer. Mas agora nem o comer. Agora há aí umas sopas reforçadas, umas sopas óptimas. Mas houve um estupor qualquer que se queixou que a sopa tinha sal a mais, e agora não põem sal na sopa. Bem, eu tenho aí sal. Mas é diferente. Esse gajo das cartas, o da bisca dos 9, era um gajo que tinha mau perder. E eu, que me estou marimbando se perco ou se ganho, acabei por conhecer melhor o gajo. E eu já não podia ver o gajo. Depois foi-se embora, parece que voltou para casa, mas vem cá todos os dias, não tem capacidade para estar sozinho.

As entradas e as saídas aqui? Nem se dá por isso! As saídas é para o cemitério. Não nos dizem, mas sabe-se logo. Nestas casas, o facto de uma pessoa morrer, requer um certo recato. É claro que as pessoas não ficam indiferentes, porque quando vêem partir alguém pensam que qualquer dia vão elas. Houve aqui alguém que se atirou de uma janela abaixo, e eu só soube muitos dias depois. Já vi morrer muita gente. E quando entram também não se dá por isso. Apresentar os recém-chegados? Não, isso não se faz! Há uns quartos grandes onde há 4 ou 5 camas. Quando morre alguém os outros não reparam. Foi a pessoa e foi a cama, e ninguém repara. Arrumam o quarto de maneira a não reparar. Isto é gente que já está ausente. Há um tipo que anda por aí nos quartos das senhoras. Ele senta-se, como se estivesse a ver televisão, mas não está a ver nada, está a dormir. É aquilo a que se chama a modorra. E eu, às vezes estou aqui e de repente estou a dormir. Nada aqui excita a atenção.

A estopa ao pé do lume

Politicamente, economicamente, podemos estar numa má altura. Mas há coisas que não voltam para trás. Uma coisa que eu tenho reparado é numas figuras de raparigas que nós nesse tempo não apanhávamos. Há agora um novo tipo de mulher. Mulheres formadas, algumas com dois cursos, com empregos, com uma ginástica de se desenrascarem formidável. São mulheres muito diferentes das do meu tempo. Sabe o que é? Começam a funcionar muito mais cedo. Não haja dúvida nenhuma que a repressão aí era tenebrosa. Fui parar à cadeia 5 vezes por causa disso. Não era bem puritanismo. Era estupidez e a Igreja católica. Eram valores como a virgindade, o pudor... Havia muita hipocrisia. Mas a gente também se governava. Eu fui parar à cadeia porque arrisquei. Se eram virgens? Bem, eu não fui lá ver se elas eram virgens.

Quando uma rapariga é menstruada, a Natureza já lhe dá o estatuto de mulher. Pode ser mãe! Já não é uma miúda, enquanto que um puto de 14 anos pode ser um pateta alegre. Não viveu nada, uma mulher com 14 anos? Essa é boa! Não viveu mas começa a viver! Com a minha primeira mulher, ainda uma menina, eu ia para o pinhal ler e ela fazia uma gracinha que era mandar uma pedrada no livro. Era um assédio sexual! Era a estopa ao pé do lume. Eu disse isso numa entrevista que dei. Sabe o que é que saiu? A sopa ao pé do lume! Agora publicaram isso em livro e já foi emendado. Estas entrevistas gravadas é uma chatice. Às vezes não é nada inteligível. E depois é também uma questão de linguagem. No meu tempo já não havia estopa, isso era uma frase que o meu pai usava. É um português que não é arcaico mas é antigo. Uma rapariga de 30 anos não entende essa linguagem. Ora, a estopa é uma coisa inflamável.

Bom. A vítima, a infeliz donzela, essa nunca se denunciava. Antigamente fazia-se uma coisa que era 'a prova da coelha'. Injectava-se numa coelha urina da presumível grávida e a coelha tinha uma alteração de temperatura ou coisa que o valha. Antigamente, rapazes e raparigas entendiam-se como se entendem hoje. Não tinham era o à vontade que há hoje. Você não faz ideia do pavor que era namorar! Vocês hoje não têm a mínima noção disso. Vocês vivem no paraíso! Mas a grande revolução foi a pílula. Não estou a falar por mim que eu nunca tomei essa porcaria. Detesto isso. Eu sou contra o aborto.

Tudo se cria

Eu não acho bem que se prendam as pessoas, mas sou contra o aborto. Eu sou a favor da Natureza. A Natureza não é a favor do aborto. Há pessoas que não podem criar os filhos? Isso é conversa! Sim, tudo se cria. Tem em mim o exemplo. Eu, sem dinheiro nenhum, sem emprego nenhum, tenho 8 filhos. Isso é conversa, isso é uma cobardia que esses gajos instigam. Não, não misture as coisas. O referendo não é a favor do aborto. Eu desisti um bocadinho da política porque fui lá de propósito para votar a favor da despenalização do aborto e foi o que se viu. Com certeza que sou a favor da despenalização. Andarem aí a prender as raparigas, isso é um disparate.

O Estado é que não quer dar o apoio à mãe solteira. Haviam de ter apoio, tudo de borla, para elas e para os filhos. Filhos indesejados? Vamos lá a ver: uma rapariga que vai para a cama com um rapaz sabe que se arrisca.

Há aqui no lar 5 ou 6 raparigas que têm vinte e poucos anos, já com dois três filhos. São miúdas? São umas mulheraças! E desenrascam-se, é o que eu sei. Como é que os meus filhos cresceram? Ora essa! Se vocês os visse, crescidos como estão! É preciso coragem. Minha e deles. As mães? As mães não foram abandonadas. Os filhos estão todos vivos, menos os que as mães mataram. Enquanto eu podia, andaram no Charles Lepierre, que era muito caro. Eu na altura era funcionário público. Não fui sempre desempregado. Depois saíram, porque eu deixei de pagar e eles tiveram que sair. Eu tive muita sorte, porque de facto não era fácil, um tipo como eu, desde 58 (que foi quando pedi a demissão) sem emprego certo. Quando me vêem dizer: estou desempregado. Eu dou logo os parabéns! Há a mania do emprego sabe? E depois metem-se em despesas e ficam agarrados. Eu nunca pensei em comprar carro, casa, essas coisas. E esta coisa das mulheres serem muito influentes é muito mau para o marido, porque exigem dos maridos um certo trem de vida. Antigamente as mulheres sujeitavam-se um bocadinho às condições que havia. E se não se sujeitavam, eu despachava-as! Agora estes gajos, querem assumir certas coisas perante as mulheres, e depois é a vaidade também, estes gajos de agora são uns vaidosos.

Porrada por encomenda não

Sim, às vezes sou um bocado duro, mas a dureza não é só franqueza, é uma exigência própria. Mas isso hoje não interessa a ninguém, hoje tudo se resume ao deve e ao haver. O que vejo por exemplo nos meus filhos, é uma retracção. Eles não se abrem. Há uma predisposição para a pessoa gostar de si própria e, em consequência disso, fecha-se, cria uma barreira. Se você ler certos textos meus vai encontrar coisas que não são fáceis de serem ditas. Tenho em mim um gosto de estar atento. Estar atento é vermo-nos, a nós próprios como aos outros, da maneira certa. O que é muito difícil.

As pessoas mudam de uma maneira total. Às vezes é até muito rápido, não é ao longo da vida. Ninguém muda? Bem, talvez. Eu acho é que ninguém, quase ninguém, se revela. Houve uma altura em que eu tinha a noção de que conhecia tudo. E hoje tenho a noção contrária. A pessoa mais boçal, mais primária, de repente tem gavetas fechadas. É muito difícil conhecer os outros. Há um texto meu que é o Teodolito, que é o homem e a sua circunstância. A pessoa que conhece a sua circunstância - se você estivesse aqui neste sítio onde eu estou, rodeada de canibais, você ficava de repente muito atenta, por uma questão de autodefesa - fica atenta. Não, não é preciso conversar muito para conhecer o outro. Há aqui uma coisa que é a gorjeta, que é um caso sério. Porque não se sabe a quem se há-de dar, se se há-de dar igual a todos, é uma chatice. Depois descobri que elas gostam é do "pourboir" discreto. Ai nos cabeleireiros também é assim? Ai não sabia. Eu sou um tipo atento. É uma maneira de estar na vida. Quando comecei a publicar no Público alguém anunciou: o escritor e polemista Luiz Pacheco. Queriam que eu fosse para o jornal dar porrada. E eu, só para chatear, para contrariar, estive quase um ano a retrair as unhas. Porrada por encomenda não."