sábado, abril 26, 2008

Água leva o regador!


LEITURAS & ETC




A TRADIÇÃO LITERÁRIA ANGOLANA

E O GRAU ZERO DA MEMÓRIA DE UM ESCRITOR

(A propósito da incapacidade de fundamentar um juízo de natureza estética e literária)




Luís Kandjimbo







Em Março de 1989, fazendo parte de uma delegação de escritores angolanos, participei no I Congresso de Escritores de Língua Portuguesa, realizado na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, onde tive a oportunidade de apresentar uma comunicação que suscitou um debate com o malogrado Manuel Ferreira, o primeiro professor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tive igualmente o grato prazer de trocar impressões com o também já falecido escritor cabo-verdiano Manuel Lopes, que me abordou para concordar com a minha tese sobre a «descalibanização» das literaturas africanas de língua portuguesa.

Desse evento conservo uma fotografia que dá uma vista parcial da audiência presente na sessão plenária de abertura. Numa das filas atrás de mim, vê-se um jovem que eu encontrara pela primeira vez em Lisboa. Lembro-me que num dos intervalos ele ter-me-ia interpelado para dizer que era angolano, nascido numa província do sul. Pareceu reivindicar o direito de estar ali, também na qualidade de «jovem escritor», para empregar uma expressão que estava então em voga em Angola. Não dei importância ao fortuito acaso. Passados cerca de dois anos, voltei a encontrá-lo na redacção do Jornal de Angola. Deu-me a notícia de que era jornalista de um jornal português, enviado a Luanda como repórter. E convidou-me a escrever um texto para a Via Latina, prestigiada revista de Coimbra. Mas a referida publicação só teve a sorte de inserir um texto meu dezassete anos depois.

Esse jovem, que em 1989 não era conhecido em Angola, chamava-se afinal Eduardo Agualusa, autor de um texto publicado no Novo Jornal de 18 de Abril do corrente. Não pertenceu a nenhuma das Brigadas de Literatura disseminadas pelo país na década de 80.

Hoje, julgo que ele jovem ignorava completamente o facto de os seis «mais novos» escritores (João Melo, E.Bonavena, Cikakata Mbalundu, Rui Augusto, Lopito Feijó) da delegação presente naquele Congresso terem passado por processos de socialização que de uma forma ou de outra lhes permitia assumir plenamente o sentimento de pertencerem a uma tradição literária angolana.

Ora, como compreender que vinte anos depois, tal jovem nascido numa província do sul de Angola, venha emitir juízos estéticos depreciativos acerca de três poetas angolanos importantes, revelando pertencer a uma tradição literária universal?

Como se explica que ganhe fortuna crítica em nome da tradição literária angolana cuja existência nega com frequência, tal como fez mais recentemente numa entrevista concedida ao conhecido humorista brasileiro Jô Soares?

Fazendo gala das suas leituras de autores «universais», é confrangedor que não saiba que estes têm as suas tradições literárias, inventadas em algum lugar do nosso planeta. Com efeito, torna-se evidente que a pertença à tradição literária angolana causa-lhe alguma repugnância, a julgar pelos indícios do modo como pensa. Para quem tira as dúvidas recorrendo aos escritores «universais», como se eles fossem representantes dos poetas orais vakuvale ou vakwanyama, que até não os conhecem, sugiro que leia T.S. Eliot, o inglês de origem americana. Se acaso leu aquele autor, esqueceu-se das teses publicadas nos Ensaios de Doutrina Crítica. Ao abordar a problemática da tradição e do talento individual, T.S.Eliot, afirma: «Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, detém, sozinho, o seu completo significado. O seu significado, a sua avaliação, é a avaliação da sua relação com os poetas e os artistas mortos». Se não tivesse perdido de vista uma voz autorizada como esta, chegaria à conclusão de que continua a revelar falhas graves de argumentação, ao ter tentado articular uma boutade destituída de qualquer consistência. Não acredito que com as suas meditações sobre uma suposta dissidência poética tenha, num sentido contrário, persuadido os leitores angolanos da poesia de Agostinho Neto, António Jacinto, Alexandre Dáskalos, Aires Almeida Santos Viriato da Cruz, António Cardoso e outros. Aponto em seguida algumas razões.

Em primeiro lugar, não fornece argumentos que tenham resultado do seu próprio pensamento, na medida em que socorre-se das palavras de dois escritores cabo-verdianos, mas não os cita com rigor argumentativo como seria desejável, por dever de ética e honestidade intelectual. Mesmo assim, no que diz respeito ao falecido João Vário, poeta com quem tive longas conversas sobre a poesia africana durante a sua última passagem por Angola, a paráfrase não corresponde ao que o perturbava neste domínio (o seu testemunho pode ser lido nos dois volumes de entrevistas a escritores cabo-verdianos da autoria de Michel Laban). Um dos males que ele denunciava em alguma poesia dos países africanos de língua portuguesa é o cantalutismo, isto é, uma certa escrita panfletária cujos autores reivindicavam o estatuto de criação poética. Nunca o ouvi falar de Agostinho Neto ou António Jacinto como maus poetas. Aliás, foi em Angola que ele sentiu a necessidade de escrever uma epopeia para cantar a gesta dos povos africanos bantu, desde os tempos das migrações até às independências. Por outro lado, João Vário não pode ser tomado como autoridade qualificada em matérias respeitantes às literaturas africanas, na medida em que, paradoxalmente, encontrava as referências do seu discurso poético na tradição greco-latina. O poeta cabo-verdiano Corsino Fortes imortalizou uma crítica feroz contra essa alienação do João Vário no poema Carta de Bia d’Ideal: «Junzin! Até na boca de São Vicente / Teu nome agora é Vário ou T.Thio Tiofe / Que tu és um negro negro greco-latino / Mas, deveras? Deveras? (...)

Em segundo lugar, opera-se com uma falácia, quando se considera que «para se escrever grande poesia é preciso primeiro ler os grandes poetas universais». O que são «poetas universais»? Não existe qualquer relação de causalidade entre a leitura de tais poetas e a escrita de excelente poesia. Além disso, há aí uma confusão entre aquilo que releva da condição de simples leitor, membro de uma determinada comunidade interpretativa, e o que entra no campo da actividade dos estudiosos da literatura, porque ler os poetas do mundo ocidental pode ser apenas uma condição necessária para explicar e comentar obras num contexto institucional em que predominem constrangimentos próprios. Invocar o universal sem ter em conta a primazia do particular é uma forma tendenciosa de reconhecer a hegemonia das culturas do mundo ocidental numa lógica colonialista. O universal assim enunciado é uma autêntica armadilha, pois ignora a existência dos Africanos, por exemplo.




É uma abominável prova de ignorância relativamente à história das literaturas africanas comparar sem fundamento dois poetas que pertencem a tradições literárias nacionais diferentes. Afirmar que Agostinho Neto (1922-1979) foi um político que frequentou a poesia e Senghor (1906-2001) um poeta que frequentou a política é, na verdade, um trocadilho que constitui o cúmulo da bazófia.

Conhecendo bem as literaturas africanas de língua francesa e inglesa, considero que semelhantes afirmações revelam a mais desbragada irresponsabilidade do acto judicativo e hermenêutico. Por isso, tenho dúvidas que quem assim pensa, conheça verdadeiramente as trajectórias biográficas dos dois escritores mencionados.

Que motivação subjaz à exaltação dos estudos clássicos de Leopold Senghor realizados na Universidade da Sorbonne, quando se esquece que, nas décadas de 40 e 50, Agostinho Neto foi dos primeiros negros angolanos a realizar os seus estudos de Medicina nas Universidades de Coimbra e de Lisboa? Ou será porque a alusão que Senghor faz à origem portuguesa do nome e à gota de sangue português representa uma virtude luso-tropical? Vê-se logo que o suposto juízo estético sobre a poesia de Agostinho Neto resvala para um registo biografista com laivos deterministas sem relevância crítica.

De tudo isso podemos retirar algumas lições. Não devemos ter ilusões. As tradições culturais e literárias servem sempre as comunidades que as criaram. Cada país tem a literatura e os escritores que merece. Por que razão teremos necessidade de convencer o mundo sobre a nossa história, a nossa cultura e a nossa literatura se elas são formas através das quais se manifesta a identidade colectiva e a coesão sociocultural das mulheres e homens deste país a que alguns de nós têm o orgulho de pertencer?

Finalmente, talvez seja interessante deixar um conselho para os leitores eruditos e poliglotas que falam das literaturas africanas, em que se inclui a literatura angolana, sem as conhecer em profundidade. Leiam a The Cambridge History of African and Caribbean Literature (2004) cuja edição foi organizada por dois vultos da crítica académica africana, os professores Abiola Irele e Simon Gikandi, respectivamente, da Universidade de Harvard e da Universidade de Michigan; e a African Literature. An Anthology of Criticism and Theory (2007), numa edição organizada por outros dois professores africanos, trabalhando igualmente nos Estados Unidos e no Canadá, Tejumola Olaniyan e Ato Quayson, respectivamente, da Universidade de Wisconsin e da Universidade de Toronto.

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