quarta-feira, março 19, 2008

No Jornal de Angola/16 Março/Artigo do Artur Queiroz


18 de Março de 2008
in Jornal de Angola, um artigo do Artur Queiroz...

O comerciante desalmado

Artur Queiroz|

José Eduardo Agualusa deu uma entrevista a um blogue português e disse que há torturadores angolanos que são tratados em Portugal como grandes escritores. Como não nomeou ninguém, quem ler a entrevista (ainda está na Internet) vai presumir que todos os grandes escritores angolanos se dedicam à tortura. Ou quando algum leitor estiver na presença de um desses escritores vai pensar que está a ver e ouvir um torturador. O senhor José Agualusa lançou um manto de calúnia sobre todos os seus confrades o que é muito grave. Mas mais grave foi ter dado a bofetada e escondido a mão. Como não nomeou os torturadores, ninguém pode defender-se de tão grave acusação. No tempo em que os animais não falavam, isto era cobardia. E um cobarde vale tanto como os seus gestos repugnantes.
A entrevista do blogue não é um caso isolado, longe disso. E no passado fim-de-semana, o presumível escritor voltou a atacar, desta vez três poetas que estão mortos e por isso nem sequer podem fazer a sua defesa. A cobardia aqui assume a dimensão de um assassinato de carácter o que faz de Agualusa uma figura com todos os predicados para entrar na minha lista pessoal dos leprosos morais. Para já não entra porque tenho pena dos outros. Passa sem reparo a falta grave de se apresentar como jornalista, mas já não passa esta frase que retiro da entrevista: “uma pessoa que ache que o Agostinho Neto, por exemplo, foi um extraordinário poeta é porque não conhece rigorosamente nada de poesia. Agostinho Neto foi um poeta medíocre. O mesmo se pode dizer de António Cardoso ou de António Jacinto”.
António Cardoso era pequenino mas tinha uma fibra que ainda hoje faz os esbirros do colonial fascismo espirrarem canivetes. Já António Jacinto e Luandino Vieira tinham sido libertados do Tarrafal mas como residência vigiada em Portugal, ainda António Cardoso penava na frigideira. Foi o último preso político a ser libertado. Regressado a Luanda foi para a Redacção da Emissora Oficial onde coordenou o turno da noite. Mas também fazia o programa cultural Resistência, um trabalho extraordinário. Meteu tanto medo aos esbirros que um dia foram buscá-lo à emissora, levaram-no para um cárcere privado e torturaram-no. Os seus colegas da rádio entraram em greve e conseguiram salvá-lo da morte certa. Acumulou com o seu trabalho na rádio um suplemento literário no Diário de Luanda, ajudado na escrita pelo Luciano Rocha e pelos gráficos Domingos Alves e Airosa (onde andam vocês, velhos companheiros?). A vida do António Cardoso é o mais belo poema que alguma vez se escreveu. Vem agora um rebento de ximba abocanhar-lhe os calcanhares. Mesmo depois de morto, António Cardoso ainda faz tremer a canalha. Que grandeza!
Eu viajei no comboio malandro entre o Zenza e o Golungo. Só um capataz despeitado não vê poesia na resistência passiva de um povo escravizado que finge que empurra o comboio mas não empurra. Eu conheci milhares de contratados, os pobres “bailundos”, nas roças Pumbassai, Alto Dande, Pingano, Poço e Irmãos, Muzekano e muitas outras. António Jacinto pegou na mão de um deles e escreveu uma carta de amor que voou do Kazengo para o mundo como um pombo verde de papel. E com as melhores sementes da liberdade, o poeta ainda relatou o grande desafio que nos levou onde estamos. Vem agora um capataz despojado do chicote e armado de uma pena venal, cuspir no túmulo do mestre.
Agostinho Neto guiou o seu povo pelo caminho das estrelas. Que outro poeta na História Universal libertou a sua pátria com poemas e fuzis? A grandeza da obra literária de Agostinho Neto foi reconhecida em todo o mundo por académicos, professores, críticos literários e confrades. Vem agora uma flatulência retardada do colonial fascismo sujar a sua memória com uma tentativa de assassinato de carácter. O senhor José Agualusa tem o direito de dar a sua opinião. Mas não pode dizer que quem considera Agostinho Neto um grande poeta “não percebe rigorosamente nada de poesia”. Quando a arrogância se associa à ignorância e ao despeito, só pode dar Agualusa. Mas por muito que lhe custe, o império colonial caiu mesmo e já não volta a ressurgir dos escombros. E nem o facto de ser um angolano tardio ou um balbuciante empregado de balcão no difícil comércio das palavras lhe desculpam o atrevimento e a cobardia de bater em quem não pode defender-se.
O que me deixou mais preocupado na entrevista de Agualusa foi ter-se refugiado na amizade de Mena Abrantes e João Melo. O moço agrediu, cuspiu e depois foi avisando que tem amigos no campo das letras. João Melo é um camarada, um amigo e sobretudo um homem honrado. Quanto a Mena Abrantes partilhei com ele a minha casa quando chegou do exílio em 1974 e foi pela minha mão para a Redacção da Emissora Oficial de Angola, hoje RNA. É um homem impoluto. Presumo que ambos perderam o sentido do olfacto. Caso contrário, quando recebem a visita de Agualusa, devem contorcer-se com vómitos. Cuidem da saúde, queridos companheiros! Quanto a José Agualusa quero dizer-lhe que os angolanos não têm culpa que tenha crescido tão pouco e que o seu estrabismo o impeça de ver para além da tampa da sarjeta. Quem nasce e cresce pequenino fica mesmo assim até ao fim. Nem todos podem ser grandes e só são dignos os que sabem viver entre as fronteiras da honra e da dignidade. É pena que não tenha aprendido esta lição.


PS: Conheço todos os volvidos, envolvidos, devolvidos e por aí fora!

Fernando Pereira