sábado, março 29, 2008

Anda aqui Água a mais para certas cisternas?




De: Sousa Jamba
Em Semanario Angolense

Em recente entrevista concedida em Angola, o escritor e jornalista José Eduardo Agualusa que diz, nomeadamente, que «uma pessoa que ache que Agostinho Neto, por exemplo, foi extraordinário poeta é porque não conhece rigorosamente nada de poesia. Agostinho Neto foi um poeta medíocre. O mesmo se pode dizer de António Cardoso ou de António Jacinto . . .»
Um tal Artur Queiroz, que assina textos de opinião no Jornal de Angola, atacou o Agualusa de uma forma tão grosseira que reduz o que deveria ser um debate sério sobre a nossa herança cultural a uma briga de bêbados num botequim.
Tenho profunda admiração pelo Agualusa que é, sem dúvida, o escritor mais sério da nossa geração. A sua capacidade de trabalho e determinação de sobreviver como escritor são impressionantes.
Na entrevista, Agualusa afirma que só quem lê seriamente é que consegue escrever livros sérios.
Esta é a perspectiva de alguém que acredita numa análise rigorosa de obras literárias.
Avancemos, porém, para a questão que tanto incomodou algumas mentes: Agostinho Neto foi ou não um poeta medíocre?
No que me diz respeito e para ser franco devo dizer que não tenho uma resposta à mão porque nunca me sentei seriamente para analisar minuciosamente a poesia dele. Posso, porém, afirmar que os poemas do moçambicano José Craveirinha me comoveram bastante quando os descobri, há alguns anos. Neste momento estou a tentar ler, em português (e não uma tradução, já que leio o inglês com mais facilidade) a obra de Luis de Camões "Os Lusíadas". Cheguei a Camões depois de ter lido a sua biografia da autoria de um escritor americano publicado nos anos 30.
Há dias li obras de poetas como Phillip Larkin, Ted Hughes e Seamus Heaney, que també me comoveram bastante. Ted Hughes, por exemplo, foi exposo da poetisa Sylvia Plath. Ele é detestado por muitas feministas do Reino Unido e nos Estados Unidos que o responsabilizam pela morte da sua mulher. A esposa de Hughes suicidou-se porque o marido seria um mulherengo. Esta é claramente uma apreciação errada: deve fazer-se uma clara distnção entre o poeta e o homem. Não há dúvida que as obras de Ted Hughes, que tratam minuciosamente da natureza, tem uma qualidade literária inegável. Quanto a Ted Hughes gostar muito de mulheres isto é outra conversa.
Na Grã- Bretanha muita gente fala agora do poeta Phillip Larkin.
Descobriu-se, recentemente, que Larkin tinha um fraco pela pornografia. Por causa desse lado da personalidade de larekin há, agora, quem defenda que a sua poesia não deveria ser ensinada nas escolas. Em meio a polémica, uma escola defendeu a sua distinção entre a vida do autor e a sua obra.
As considerações em torno de Hughes e Larkin levam-me àstrês figuras cujo mérito literário foi questionado pelo Agualusa, o que deu lugar à fúria do senhor Artur Queiroz. Quando o Agualusa diz que o Agostinho Neto foi um poeta medíocre não está, nem de longe, a questionar as suas credenciais como nacionalista angolano. Isto está fora de questão. A fusão do Neto-politico, muitas das vezes feita, é que resulta em afirmações intelectuais pouco firmes. Um bom politico não é necessáriamente um bom poeta e vice versa.
O sr. Artur Queiroz afirma que Agostinho Neto é universalmente reconhecido como grande poeta. Tenho dado aulas e feito conferências de e sobre literatura africana em várias partes do mundo. Muitos dos meus alunos e participantes dessas conferências nunca ouviram falar de Agostinho Neto. Isto é a verdade! Da África lusófuna só há dois escritores de que se fala muito: o moçambicano Mia Couto e o angolano... José Eduardo Agualusa. SAerá que isto é justo? Mia Couto e Agualusa chegaram «lá» por mérito prório ou, como muitos escritores negros dizem em privado, ambos são promovidos por fundações portuguesas porque é neles que muito lusos se revêem? Será que o Agualusa é mesmo um bom escritor (eu acho que sim) ou será, apenas,fruto de um bom marketing?
Pergunto: Agualusa e Mia Couto serão apenas escrivães que relatam à metrolpole( dos salões de Cascais) os últimos desenvolvimentos queocorrem na terra dos pretos? Sei do que estou a falar.Sei que estou a pisar os terrenos das ideias preconcebidas. As respostas a estas questões só podem ser encontradas num engajamento sério com as obras de Agualusa e Mia Couto. E se formos honestos desse engajamento podem, até, surgir factos que iluminariam de forma profunda a nossa existência com africanos.
O Sr. Artur Queiroz defende Agostinho Neto, António Cardoso e António Jacinto sem aludir às suas obras poéticas. Segundo o Sr. Queiroz « a vida de António Cardoso é o mais belo poema que alguma vez se escreveu» Mas que é isso? Como todos os outros çleitores, quero saber a razão que faz com que o Sr Queiroz pense que António Cardoso não é poeta medíocre - como o Agualusa afirma. É esta a questão. Alguém tem de mostrar-nos que o Agualusa está equivocado.
Em Angola impõe e já elevar o debate sobre a nossa vida cultural. O texto de Artur Queiroz está cheio de elogios a figuras que já não precisam disso - sobretudo de alguém que, bem vistas as coisas, não é mais do que um bem dotado lambe-botas, com um dicionário de sinónimos ao lado.
Temos de agradecer a Agualusa por ter levantado a questão. Agora cabe-nos ler ou reler as obras dos autores que ele menciona para tirarmos as nossas conclusões.



A propósito de «Em defesa de Jóse Eduardo Agualusa»
Direito de Resposta de Artur Queiroz
Sousa Jamba quer que eu discuta a herança cultural dos angolanos com quem não tem nada a verAos responsáveis do Semanário AngolenseOs meus melhores cumprimentos. Lamento não poder dirigir-me ao senhor director do jornal, mas o seu nome não consta na primeira página e em nenhum local das páginas interiores encontrei o genérico da edição nº 257 de 22 a 29 de Março. Num primeiro momento pensei que tinha comprado uma cópia falsa. Comprei uma segunda e era igual à anterior. Por isso peço desculpa por não me dirigir pessoalmente ao director do Semanário Angolense. Presumo que não necessito de invocar o instituto do Direito de Resposta para defender a minha honra e o meu bom-nome, mais uma vez violados nas páginas do Semanário Angolense. Na primeira página da edição de hoje, numa chamada titulada «Em Defesa de Agualusa», o meu nome é citado num lead onde se afirma que eu reduzi aquilo que deveria ser um debate sério a «uma briga de bêbados num botequim». Esta afirmação é, no mínimo, desprimorosa. Percebi depois que foi extraída de um arrazoado assinado por um tal Sousa Jamba. Lamento que o jornal tenha assumido a baixeza. Li as garatujas de Sousa Jamba e fiquei a perceber o porquê do insulto da primeira página. Quem não sabe escrever também não sabe ler e o autor da defesa de Agualusa é um dos milhões de seres humanos no mundo, que tiveram a grande desgraça de não terem aprendido a ler. No texto que publiquei no Jornal de Angola eu insurgi-me contra o facto de Agualusa ter afirmado que há angolanos torturadores que em Portugal são tratados como grandes escritores. Mas não nomeou ninguém e por isso todos são suspeitos de praticantes da tortura. Uns tempos depois foi mais arrogante e mais cobarde. Disse que as pessoas que consideram Agostinho Neto, António Jacinto e António Cardoso grandes poetas não percebem nada de poesia. E remata colocando aos três o rótulo de medíocres. Qualquer idiota tem direito à palavra e à opinião. Mas nenhum indigente mental pode impor a sua opinião e muito menos passar um atestado de ignorância a quem não pensa como ele. E foi só isso que me levou a reagir contra o biltre. Sousa Jamba quer que eu discuta a herança cultural dos angolanos com quem não tem nada a ver com a cultura ou as culturas de Angola. E Agualusa não tem. Falta-lhe lastro e memória. Vivência. Estudo. Sentimento. Afinal falta-lhe tudo. É muito grave não é? Os colonialistas usaram sempre a arma da memória para imporem os seus valores e apagarem os nossos. Agualusa aprendeu a lição. Para ele, a Literatura Angolana começou no dia em que foi publicado o seu primeiro livro. Quando muito, o primeiro livro de Sousa Jamba. É uma táctica que os nazis adoptaram e dela abusaram. A Alemanha começou no dia em Hitler subiu ao Poder. O salazarismo fez o mesmo. Angola sem os portugueses nunca existiu. Eu afirmei no meu artigo publicado no Jornal de Angola que Agostinho Neto é um poeta universalmente reconhecido. E Sousa Jamba contesta afirmando que já deu muitas aulas e fez muitas conferências sobre Literatura Africana em várias partes do mundo e os participantes nunca ouviram falar de Agostinho Neto. Se foi falar de literatura à Universidade da Jamba é natural que os alunos nada soubessem do poeta Agostinho Neto. Ou se foi conferenciar com os guardas dos paióis de armas da Unita em vários países africanos. Ou mesmo numa qualquer escola dos karkamanos. Portanto depende dos alunos, depende das escolas e depende de quem lhe fez os convites para dar aulas e conferenciar. Mesmo correndo o risco de dar demasiada confiança a um semi-analfabeto pretensioso, vou responder a um desafio que ele me faz nas suas garatujas alinhadas por alturas e perfiladas pela extrema-direita. Quer saber porque razão considero António Cardoso um grande poeta? Porque ele nunca tratou a arte poética ou a arte literária como uma mercadoria. Para mim, essa circunstância deixa-o a anos-luz de distância de biltres como Agualusa. Finalmente, Sousa Jamba diz que sou um lambe botas de Agostinho Neto, António Jacinto e António Cardoso. Se por uma distracção do acaso Jamba soubesse o que significa essa expressão, eu considerava-me insultado. Mas um pobre ignorante sabe lá o que significa lambe botas? Agostinho Neto, António Jacinto e António Cardoso não precisam de mim para defendê-los de um canalha sem nome ou de um analfabeto da Jamba. No artigo que publiquei no Jornal de Angola apenas me defendi a mim. Então o professor do sinaleiro da Jamba vem a terreiro defender o parceiro de lobby da Unita e eu é que lambo botas? O Savimbi deixou estes maganos de cabeça avariada! Luanda, Março de 2008-03-22Artur Queiroz










A poesia de Agostinho Neto, António Cardoso e António Jacinto é medíocre?
A formação do cânone literário e a errância argumentativa de um «leitor»Luís Kandjimbo
1. Está em curso em Angola uma reforma curricular que deverá ser capaz de «responder à exigência da aplicação dos fundamentos de um Novo Sistema Educativo», segundo a Estratégia Integrada para a Melhoria do Sistema de Educação (2001-2015) do governo angolano. No âmbito do referido processo de reforma, o Instituto Nacional de Investigação e Desenvolvimento da Educação (Inide) preparou o Programa de uma disciplina que se designa por Literatura. Apesar de o título do documento referir apenas «Programa de Literatura», os seus objectivos gerais mencionam expressamente a Literatura Angolana. Na sua introdução geral, lê-se o seguinte: «O Ensino da Literatura como disciplina autónoma para 11ª e 12ª classes do Ensino Secundário justifica-se por várias razões embora não entendendo uma autonomia como factor de afastamento de estudo sistemático da língua (...)» Atendendo aos imperativos da realidade cultural do país e ao tipo de necessidades formativas das crianças e jovens angolanos faz sentido propor a introdução da disciplina de Literatura Angolana no currículo do sub-sistema do ensino secundário. É uma disciplina que corresponderá a alguns objectivos propostos pela referida Estratégia, nomeadamente, «promover uma nova consciência nacional baseada na tolerância, no respeito por si próprio e pelos outros, na identidade cultural, e na cultura da paz.»; «revalorização do património cultural nacional, (...) promoção de vectores que veiculem o património cultural e em particular as línguas nacionais». Neste capítulo devemos ter em conta as disposições da Carta do Renascimento Cultural de África que recomenda expressamente «a adaptação dos currículos das escolas às necessidades de desenvolvimento e realidades nacionais, culturais e sociais» e a «introdução da Cultura Africana em todos os sistemas de ensino nacionais.» A disciplina de Literatura Angolana pode com a sua dimensão cultural e humanística contribuir decisivamente para a formação integral do cidadão Angolano, criança, jovem ou adulto. Entendo que a Literatura Angolana deve fazer parte das matrizes curriculares de todas as classes do ensino secundário, contrariamente ao que aconteceu, por exemplo, na revisão curricular em Portugal, onde a Literatura Portuguesa passou a ser ministrada em dois anos apenas e como disciplina específica do curso científico-humanístico de Línguas e Literaturas, nos 10º e 11º ou 11º e 12º anos. A partir do 1º ciclo do ensino secundário o aluno entraria em contacto com a disciplina de Literatura Angolana que teria como base a História da Literatura Angolana. Ensino da Literatura Angolana e Reforma Curricular são enunciados que gravitam em torno do conceito de currículo. Na abundante produção dos estudos curriculares não é consensual uma definição de currículo. Mas vou socorrer-me da definição daquela que na bibliografia especializada é a mais recorrente. O currículo pode ser definido como «projecto selectivo de cultura, cultural, social, política e administrativamente condicionado, que preenche a actividade escolar e que se torna realidade dentro das condições da escola tal como se acha configurada». O que esta acepção de currículo nos sugere é que o planeamento curricular se inscreve simultaneamente no campo das políticas educativas e das políticas culturais. O segmento cultural do planeamento curricular detecta-se na elaboração dos conteúdos das aprendizagens, especialmente em matérias e disciplinas científico-humanísticas e artísticas. Por isso, pode dizer-se que o currículo prescrito de que a Literatura Angolana fizer parte (com a disciplina de História de Arte Angolana) veiculará valores de uma cultura comum cuja expressão máxima é representada pela categoria de Angolanidade. Na esteira do sociólogo francês Pierre Bordieu, diremos que «todo o acto de transmissão cultural implica necessariamente a afirmação do valor da cultura transmitida (e paralelamente, a desvalorização implícita ou explícita das outras culturas possíveis)». Por outras palavras, isto significa que «todo o ensino deve produzir, em grande parte, a necessidade de seu próprio produto e, assim, constituir enquanto valor ou como valor dos valores, a própria cultura cuja transmissão lhe cabe». Estabelecidas as prescrições e regulações do currículo e a partir daí o programa da disciplina de Literatura Angolana, colocar-se-á a questão da selecção de textos que suportarão o processo de ensino-aprendizagem. Isto é, levanta-se o problema do cânone literário. Tanto mais pertinente é a sua abordagem quanto se sabe que há cerca de três anos se desencadeou em Luanda um debate a propósito de um conjunto de autores e textos seleccionados para constituir aquilo a que se chamou «Biblioteca da Literatura Angolana». Desenvolve-se agora uma outra polémica sobre a qualidade estética da obra de três poetas angolanos, nomeadamente, Agostinho Neto, António Jacinto e António Cardoso. Lendo as diversas peças da polémica, não posso limitar-me a manifestar a minha simpatia por qualquer uma das posições. Trata-se de uma questão que diz respeito à representatividade de autores e textos no quadro da Literatura Angolana enquanto instituição. O problema merece outro tipo de reflexão porque o cânone literário institucional entendido como uma selecção de textos e autores desempenha várias funções de que se destacam as seguintes: fornecer modelos de referência às comunidades interpretativas; transmitir às gerações jovens instrumentos para interpretar textos; servir como base de legitimação das grelhas teóricas e críticas. O debate sobre o cânone literário em Angola emerge pela primeira vez e ganha visibilidade pública a partir de 1997, por ocasião do Encontro Internacional sobre Literatura Angolana, realizado em Luanda, quando perante os argumentos de Pires Laranjeira, que identificava a coexistência em Angola de duas lutas por um novo cânone, rotulando-me como «fundamentalista negro» devido à minha leitura fundamentada do romance Yaka de Pepetela – no qual o autor esvazia o valor de determinada categoria de personagens referenciais – apresentei uma comunicação denunciando a existência de uma ideologia oculta na «escola de estudos literários africanos em Portugal» que faz a apologia da crioulidade e de um cânone literário de «escritores mestiços» de que dependeria o prestígio da Literatura Angolana. Os leitores que tiverem interesse em conhecer a fonte de tal informação podem ler os livros de José Carlos Venâncio. Este autor, Francisco Soares e alguns epígonos renovam uma tal teoria sociológica das «ilhas crioulas» (teoria da criolulidade) elaborada pelo ensaísta Mário António Fernandes de Oliveira em 1968, no livro «Luanda, Ilha Crioula», e aplicam-na especialmente à sociedade e literatura angolanas. Para o efeito socorrem-se muitas vezes do Éloge de la Créolité, manifesto publicado em 1989 de que são autores os escritores antilhanos Patrick Chamoiseau, Jean Barnabé e Raphael Confiant, como se Angola fosse um espaço insular habitado exclusivamente por pessoas enviadas para o território em vagas sucessivas de imigrações organizadas. No entanto, Angola não se assemelha em nada àquilo a que os luso-tropicalistas consideravam como sendo «o mundo que o português criou» de que resultariam as sobreditas «ilhas crioulas». De resto, estas não existem em Angola. As polémicas desencadeadas em torno da selecção de obras constitutivas de um conjunto a que se deu o nome de «Biblioteca da Literatura Angolana» e acerca da apreciação estética da obra poética de Agostinho Neto, António Jacinto e António Cardoso traduzem bem a existência de conflitualidade de teorias, estéticas e interpretações, revelando uma certa geopolítica do conhecimento, o lugar a partir do qual cada um produz o seu discurso. 2. Distinguindo o essencial do acessório, é importante saber se o argumento proposto para qualificar Agostinho Neto como poeta medíocre pode ser considerado válido, susceptível de aceitação, e se o discurso em que ocorre é coerente. Em primeiro lugar, devemos reconhecer que a literatura angolana tem uma dimensão institucional, subjacente ao ensino da literatura e à atribuição de funções representativas e identitárias de autores e obras literárias. Com ela se institui a legitimação da literatura como parte do património cultural angolano. Em segundo lugar, podendo qualquer leitor dar preferência a este ou aquele autor e respectiva obra, tal não significa que se torna imune de ser responsável pelas escolhas que faz, a partir do momento em que enuncia o seu juízo de valor. Ao invés, em homenagem a uma ética da leitura, ele está vinculado à obrigação de fundamentar e clarificar, de relativisar o seu ponto de vista e de saber que na origem da sua escolha está a sua idiossincrasia, o seu universo de experiências e a sua enciclopédia de leitor. Neste sentido, cada leitor pode formar o seu cânone literário pessoal que reflectirá os seus gostos e inclinações estéticas. A polémica em curso dá um outro aviso à navegação: os leitores pertencem sempre a alguma comunidade interpretativa. Por isso, o leitor que pertencer à comunidade interpretativa angolana, independentemente das suas preferências, não terá dificuldade em concluir que quer em Angola quer em outras partes deste nosso mundo, Agostinho Neto e sua obra integram cânones literários críticos, pedagógicos e diacrónicos para usar parte de uma classificação de Alastair Fowler. Sagrada Esperança é um clássico da literatura angolana. A sua leitura causou arrepios a muitos poetas das gerações seguintes, sendo o modelo a partir do qual se produziram rupturas de natureza estética, como efectiva demonstração de «desleituras» e «desescritas». Com maior ou menor sucesso, os poetas angolanos que emergem na década de 70, por exemplo, reescrevem a gramática da geração literária de Agostinho Neto. Ora, desejando conhecer as boas razões para negar esse facto, vou em seguida exercitar uma avaliação do referido argumento: a) Quem goste realmente de ler vai indicar escritores de outros países com obra feita; b) Há pessoas que acham Agostinho Neto um extraordinário poeta; c) Essas pessoas não conhecem rigorosamente nada de poesia; d) Agostinho Neto foi um poeta medíocre. Do ponto de vista da lógica da comunicação argumentativa estamos perante um evento implausível. Na verdade, para ser um argumento válido faltam-lhe premissas fidedignas. Ou seja, as quatro frases são premissas fracas. Mas caberá ao seu proponente provar a qualidade das suas premissas e da sua conclusão. O argumento é falacioso e inválido, desde logo devido à diversa informação omissa. Falacioso porque faz apelo à ignorância (ad ignorantiam, diriam os latinos), o proponente parte do pressuposto de que afirmação é verdadeira, pois ninguém provará que é falsa. Inválido porque apresenta defeitos lógicos. Este género de argumentos é usado por cabotinos, indivíduos que geralmente pretendem exibir uma capacidade de provocar a opinião pública. Um conhecedor da literatura angolana, hipoteticamente menos incauto, teria formulado o seguinte argumento: a) e a obra poética de escritores da geração literária angolana de 40; b) Alguns poetas da geração literária angolana de 40 são medíocres; c) Logo, Agostinho Neto, escritor da geração literária angolana de 40, é um poeta medíocre. Este argumento configura uma mera hipótese exemplificativa. Mesmo assim a sua conclusão não poderia suscitar aceitação. As premissas são válidas. Por exemplo, Geraldo Bessa Victor é um poeta angolano medíocre que pertence a essa geração. Porém, a conclusão é falsa. O proponente evitaria com certeza cair nas malhas da teoria que desvaloriza a referencialidade e defende o texto absoluto. Não ignoraria o facto de a literatura angolana constituir um sistema que convoca necessariamente o autor, a sua biografia, o universo cultural que modela a sua linguagem. Tendo em conta o princípio do ónus da prova, esse «conhecedor menos incauto» forneceria certamente as suas razões para justificar as premissas e a relação que elas estabelecem com a conclusão. Ainda que não pertencesse à comunidade interpretativa que reconhece a canonicidade de Agostinho Neto, António Jacinto e António Cardoso, teria a necessidade de reformular a conclusão do argumento.



O GOSTO ÚNICO

28/03/2008

José Eduardo Agualusa | Capital | Luanda

Não posso dizer que tenha ficado surpreendido com algumas das reacções a uma entrevista que concedi recentemente ao Semanário Angolense. Atravessamos um tempo um pouco estranho, de transição de um regime de pensamento único para aquilo que, espero, venha a ser uma verdadeira democracia. O que diferencia uma ditadura de uma democracia é a pluralidade de ideias e de opiniões sobre qualquer assunto, e a forma como essas ideias são recebidas não apenas pelos governantes, mas pela generalidade da população.

Os ditadores esforçam-se por estabelecer primeiro uma determinada ideologia política, mas raramente se detêm aqui – tentam a seguir impor a toda a gente os seus próprios gostos sobre música, literatura, artes plásticas, desporto, sexo, ou mesmo moda. Hitler, que foi um medíocre pintor de paisagens, embirrava com o cubismo e o expressionismo, classificados como “arte degenerada”. As obras de grandes pintores, como Chagall, Mondrian ou Max Ernst, foram então consideradas produtos de mentes doentias. "De agora em diante iremos empreender uma guerra implacável contra os últimos remanescentes da desintegração cultural”, assegurou Hitler num famoso discurso sobre arte moderna, em 1937: “Por tudo que nós apreciamos, esses bárbaros pré-históricos da Idade da Pedra podem retornar às cavernas de seus ancestrais e lá realizar os seus rabiscos primitivos internacionais”. Os seguidores de Hitler, evidentemente, elogiavam os dotes artísticos do fuher. Mas, claro, quem acabou triunfando não foi Hitler, e sim os artistas ditos degenerados.

Mobutu não gostava de calças à boca de sino. Mugabe odeia (e persegue) os homossexuais. No Chile de Pinochet, e em Moçambique, no tempo de Samora Machel, jovens com cabelo comprido não eram muito apreciados pelo regime.

No seio do partido no poder confrontam-se hoje em dia democratas autênticos, democratas de fantasia – que ainda há poucos anos defendiam o sistema de partido único –, e uma mão cheia de órfãos da ditadura, mortos-vivos que não conseguem adaptar-se aos novos tempos e insistem em classificar como traidores à pátria todos os que se atrevam a contestá-los. Partido e pátria são para estas pessoas exactamente o mesmo, ou, ao menos, o partido constitui uma extensão da pátria.
Estes zombies são hoje, dentro do MPLA, um arcaísmo deselegante. Tenho a certeza de que incomodam, com a sua brutalidade, os próprios companheiros de partido. Julgo que têm os dias contados. Já não é possível, como se fez em 1975, acusar adversários políticos de se alimentarem de carne humana (recuperando desta forma, e talvez não por acaso, uma das mais racistas e abjectas fantasias coloniais). Felizmente esse tempo passou.