segunda-feira, abril 21, 2008

Agualusa no Novo Jornal de 19 de Abril de 2008



NOVO JORNAL DE 18 DE ABRIL DE 2008

Dissidência poética ou a poética da dissidência
Neto foi buscar parte da sua motivação poética a Senghor mas não dispunha nem do talento deste, nem da sua vasta erudição

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
HESITO UM POUCO em aceitar o desafio do Novo Jornal para explicar mais deta¬lhadamente os motivos de algumas afir¬mações que fiz em recente entrevista ao Semanário Angolense. Fiquei surpreendi¬do com a desmesurada atenção que me¬reci por parte da imprensa angolana e em especial do Jornal de Angola, cujo director me dedicou dois editoriais! Aparentemen¬te o director do Jornal de Angola prefere discutir poesia a meditar sobre os proble¬mas sérios que afligem o nossso pais. Não sei se nos devemos alegrar ou revoltar. Exerci durante longos anos o oficio de crí¬tico literário em publicações muito respei¬tadas, como os jornais Público e Expresso, de Portugal, ou ainda a revista Colóquio Letras. Estou consciente, não obstante, do reduzido valor das minhas opiniões li¬terárias. Não são suficientes para autori¬zar, ou desautorizar, quem quer que seja. São simplesmente as minhas opiniões. Para me fazer compreender melhor, quan¬to ao assunto que me traz aqui, talvez seja útil comparar a obra e o trajecto de Agos¬tinho Neto com o de outro grande nome do nacionalismo africano: Leopold Sedar Senghor. Agostinho Neto e Leopold Senghor tiveram percursos aparentemen¬te semelhantes. Senghor foi o primeiro presidente do Senegal. Agostinho Neto foi o primeiro presidente de Angola. Am¬bos publicaram livros de poesia. Olhan¬do com mais atenção, porém, começam a perceber-se as diferenças. Agostinho Neto foi um político que frequentou a poesia -por razões políticas. Senghor foi um poe¬ta que frequentou a política - por razões poéticas. Leopold Sedar Senghor era um homem com uma sólida formação clássi¬ca. Foi, com Aimé Cesaire, o principal im¬pulsionador do movimento da negritu¬de. Ao mesmo tempo sempre demonstrou um enorme orgulho por aquilo a que ele chamava „a minha gota de sangue por¬tuguês": „0uço no mais íntimo de mim o canto de voz umbrosa das saudades. Se¬rá a voz antiga, a gota de sangue portu¬guês que ascende do fundo dos tempos? / 0 meu nome que remonta às suas fon¬tes?/ Gota de sangue ou então Senhor, a alcunha que um capitão pôs outrora a um bom de um marujo? Reencontrei o meu sangue, descobri meu nome, o ano passa¬do em Coimbra, em plena selva dos livros" (Elegia das Saudades). Senghor, recordo, foi o primeiro africano a licenciar-se pe¬la Sorbonne e o primeiro a ocupar um lu¬gar na Academia Francesa. Deixou onze li¬vros. Uma obra surpreendente, original, que foi beber quer à Grécia Antiga quer a certas tradições africanas. Agostinho Ne¬to deixou-nos no conjunto menos de uma centena de poemas breves. Uma produção tão escassa teria de ser realmente extraor¬dinária para que a podessemos considerar relevante - ora, sinto muito, tal não se ve¬rifica. Agostinho Neto foi buscar boa parte da sua motivação poética a Senghor, mas não dispunha nem do talento deste, nem tão pouco da sua vastíssima erudição. Os versos de Agostinho Neto cumpriram com sucesso a função que se propunham, ou seja, a de chamar a atenção para a injuntiça colonial, mas, ao contrário dos de Leo¬pold Senghor, dificilmente ganharão o fu¬turo.
Antes de mim já outras vozes muitíssimo mais autorizadas haviam afirmado o mes¬mo. Limito-me a recordar aqui o poeta cabo-verdiano João Vário (esse sim, extra¬ordinário!), o qual em várias ocasiões se referiu a Agostinho Neto como um poeta menor. 0 escritor Germano Almeida refere-se numa das suas crónicas - sempre di¬vertidas e saborosas - a uma dessas oca¬siões.
Talvez se justifique aqui acrescentar, pa¬ra concluir, que gosto muito de escutar os versos de Agostinho Neto musicados por Rui Mingas. Gosto deles, como cente¬nas de milhares de angolanos, devido à ar¬te de Rui Mingas e também porque fazem parte do meu imaginário, e isto indepen¬dentemente da sua qualidade literária. Quando quero ler grande poesia, então procuro outros autores. E era aqui que eu queria chegar na entrevista ao Semanário Angolense. Para se escrever grande poe¬sia é preciso primeiro ler os grandes poe¬tas universais. Acreditar que temos mui¬tos poetas excelentes pode melhorar a nossa auto-estima mas não faz com que tenhamos de facto muitos poetas exce¬lentes. Podemos até convencer-nos a nós, mas não convenceremos nunca o resto do mundo.