segunda-feira, abril 28, 2008

Este não mete Água!


Palestra do escritor moçambicano Mia Couto em homenagem a Jorge
Amado, lida em São Paulo no dia 25


"Eu venho de muito longe e trago aquilo que eu acredito ser uma mensagem
partilhada pelos meus colegas escritores de Angola, Moçambique, Cabo
Verde,Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe. A mensagem é a seguinte: Jorge
Amado
foi o escritor que maior influência teve na gênese da literatura dos
países africanos que falam português.

A nossa dívida literária com o Brasil começa há séculos, quando Gregório
de Mattos e Tomaz Gonzaga ajudaram a criar os primeiros núcleos literários
em Angola e Moçambique. Mas esses níveis de influência foram restritos e
não se podem comparar com as marcas profundas e duradouras deixadas pelo
baiano.

Deve ser dito (como uma confissão à margem) que Jorge Amado fez pela
projeção da nação brasileira mais do que todas as instituições
governamentais juntas. Não se trata de ajuizar o trabalho dessas
instituições, mas apenas de reconhecer o imenso poder da literatura.
Nesta sala, estão outros que igualmente engrandeceram o Brasil e criaram
pontes com o resto do mundo. Falo, é claro, de Chico Buarque e Caetano
Veloso.
Para Chico e Caetano, vai a imensa gratidão dos nossos países que
encontraram luz e
inspiração na vossa música, na vossa poesia. Para Alberto Costa e Silva vai
o
nosso agradecimento pelo empenho sério no estudo da realidade histórica do
nosso continente.

Nas décadas de 50, 60 e 70, os livros de Jorge cruzaram o Atlântico e
causaram um impacto extraordinário no nosso imaginário coletivo. É
preciso dizer que o escritor baiano não viajava sozinho: com ele chegavam
Manuel
Bandeira, Lins do Rego, Jorge de Lima, Erico Veríssimo, Rachel de
Queiroz,Drummond de Andrade, João Cabral Melo e Neto e tantos, tantos
outros.

Em minha casa, meu pai - que era e é poeta - deu o nome de Jorge a um
filho e de Amado a um outro. Apenas eu escapei dessa nomeação referencial.
Recordo que, na minha família, a paixão brasileira se repartia entre
Graciliano Ramos e Jorge Amado. Mas não havia disputa: Graciliano
revelava o osso e a pedra da nação brasileira. Amado exaltava a carne e a
festa
desse mesmo Brasil.

Neste breve depoimento, eu gostaria de viajar em redor da seguinte
interrogação: por que este absoluto fascínio por Jorge Amado, por que
esta adesão imediata e duradoura?

É sobre algumas dessas razões do amor por Amado que eu gostaria de falar
aqui. É evidente que a primeira razão é literária, e reside inteiramente
na qualidade do texto do baiano. Eu acho que o maior inimigo do escritor
pode ser a própria literatura. Pior que não escrever um livro, é
escrevê-lo
demasiadamente. Jorge Amado soube tratar a literatura na dose certa, e
soube permanecer, para além do texto, um exímio contador de histórias e
um notável criador de personagens. Recordo o espanto de Adélia Prado que,
após a edição dos seus primeiros versos confessou: "Eu fiz um livro e,
meu
Deus,não perdi a poesia..." Também Jorge escreveu sem deixar nunca de
ser
um
poeta do romance. Este era um dos segredos do seu fascínio: a sua
artificiosa naturalidade, a sua elaborada espontaneidade.

Hoje, ao reler os seus livros, ressalta esse tom de conversa intíma, uma
conversa à sombra de uma varanda que começa em Salvador da Bahia e se
estende para além do Atlântico. Nesse narrar fluído e espreguiçado,
Jorge vai desfiando prosa e os seus personagens saltam da página para a
nossa
vida cotidiana.

O escritor Gabriel Mariano de Cabo Verde escreveu o seguinte: "Para mim,
a descoberta de Amado foi um alumbramento porque eu lia os seus livros e
via a minha terra. E quando encontrei Quincas Berro d'Água eu o via na
Ilha
de São Vicente, na minha rua de Passá Sabe."

Essa familiaridade exisitencial foi, certamente, um dos motivos do
fascínio nos nossos países. Seus personagens eram vizinhos não de um lugar,
mas
da nossa própria vida. Gente pobre, gente com os nossos nomes, gente com as
nossas raças passeavam pelas páginas do autor brasileiro. Ali estavam os
nossos malandros, ali estavam os terreiros onde falamos com os deuses,
ali estava o cheiro da nossa comida, ali estava a sensualidade e o perfume
das nossas mulheres. No fundo, Jorge Amado nos fazia regressar a nós
mesmos.

Em Angola, o poeta Mario António e o cantor Ruy Mingas compuseram uma
canção que dizia: Quando li Jubiabá/me acreditei Antônio Balduíno./Meu
Primo, que nunca o leu/ficou Zeca Camarão. E era esse o sentimento:
António Balduino já morava em Maputo e em Luanda antes de viver como
personagem
literário. O mesmo sucedia com Vadinho, com Guma, com Pedro Bala, com
Tieta, com Dona Flor e Gabriela e com tantos os outros fantásticos
personagens.

Jorge não escrevia livros, ele escrevia um país. E não era apenas um
autor que nos chegava. Era um Brasil todo inteiro que regressava à África.
Havia pois uma outra nação que era longínqua mas não nos era exterior. E
nós
precisávamos desse Brasil como quem carece de um sonho que nunca antes
soubéramos ter. Podia ser um Brasil tipificado e mistificado, mas era um
espaço mágico onde nos renasciam os criadores de histórias e produtores
de felicidade.

Descobríamos essa nação num momento histórico em que nos faltava ser
nação. O Brasil - tão cheio de África, tão cheio da nossa língua e da
nossa
religiosidade - nos entregava essa margem que nos faltava para sermos
rio.

Falei de razões literárias e outras quase ontológicas que ajudam a
explicar por que Jorge é tão Amado nos países africanos. Mas existem outros
motivos, talvez mais circunstanciais.

Nós vivíamos sob um regime de ditadura colonial. As obras de Jorge Amado
eram objeto de interdição. Livrarias foram fechadas e editores foram
perseguidos por divulgarem essas obras. O encontro com o nosso irmão
brasileiro surgia, pois, com épico sabor da afronta e da
clandestinidade.

A circunstância de partilharmos os mesmos subterrâneos da liberdade
também contribuiu para a mística da escrita e do escritor. O angolano
Luandino
Vieira, que foi condenado a 14 anos de prisão no Campo de Concentração
do Tarrafal, em 1964, fez passar para além das grades uma carta em que
pedia o seguinte: "Enviem meu manuscrito ao Jorge Amado para ver se ele
consegue
publicar lá no Brasil..."

Na realidade, os poetas nacionalistas moçambicanos e angolanos ergueram
Amado como uma bandeira. Há um poema da nossa Noêmia de Sousa que se
chama Poema de João, escrito em 1949 e que começa assim:

João era jovem como nós/João tinha os olhos despertos,/As mãos
estendidas para a frente,/A cabeça projetada para amanhã,/João amava os
livros que
tinham alma e carne/João amava a poesia de Jorge Amado

E há, ainda, outra razão que poderíamos chamar de linguística. No outro
lado do mundo, se revelava a possibilidade de um outro lado da nossa
língua.

Na altura, nós carecíamos de um português sem Portugal, de um idioma
que, sendo do Outro, nos ajudasse a encontrar uma identidade própria. Até
se
dar o encontro com o português brasileiro, nós falávamos uma língua que
não
nos falava. E ter uma língua assim, apenas por metade, é um outro modo de
viver calado. Jorge Amado e os brasileiros nos devolviam a fala, num outro
português, mais açucarado, mais dançável, mais a jeito de ser nosso.

O poeta maior de Moçambique, chamado José Craveirinha, disse o seguinte
numa entrevista: "Eu devia ter nascido no Brasil. Porque o Brasil teve
uma influência tão grande que, em menino eu cheguei a jogar futebol com o
Fausto, o Leônidas da Silva, o Pelé. Mas nós éramos obrigados a passar
pelos autores clássicos de Portugal. Numa dada altura, porém, nós nos
libertamos com a ajuda dos brasileiros. E toda a nossa literatura passou
a ser um reflexo da Literatura Brasileira. Quando chegou o Jorge Amado,
então, nós tínhamos chegado à nossa própria casa."

Craveirinha falava dessa grande dádiva que é podermos sonhar em casa e
fazer do sonho uma casa. Foi isso que Jorge Amado nos deu. E foi isso
que fez Amado ser nosso, africano, e nos fez, a nós, sermos brasileiros.
Por
ter convertido o Brasil numa casa feita para sonhar, por ter convertido
a sua vida em infinitas vidas, nós te agradecemos companheiro Jorge. Muito
obrigado."


Mia Couto
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O escritor Antonio Emílio Leite Couto, Mia Couto, nascido em 1955 na
cidade de Beira, em Moçambique, é poeta, contista, cronista e romancista,
autor
de livros como Terra Sonâmbula, O Último Vôo do Flamingo e O Outro Pé da
Sereia, entre outros