quarta-feira, abril 30, 2008

Crise de alimentos, segurança alimentar e agricultura sustentável



NOVO JORNAL DE 18 DE ABRIL DE 2008

Crise de alimentos, segurança alimentar e agricultura sustentável

Angola tem condições para envitar alguns males que a actual crise alimentar provoca através de uma política agrícola mais autónoma e substentável

Fernando Pacheco
A REFLEXÃO ACADÉMICA e científica sobre de¬senvolvimento é muito pobre em Angola, prin¬cipalmente quando se trata de desenvolvimen¬to rural, o que é explicado pela subalternização da investigação científica e dos problemas rurais no quadro das prioridades do Governo. A forma como se (não) tem abordado a crise do aumento dos preços dos alimentos entre nós é apenas mais uma evidência disso.

Acabada a guerra, aumentou naturalmente o in¬teresse na produção camponesa - que errada¬mente continua a ser considerada de subsistên¬cia, ignorando-se que ela foi responsável pela auto suficiência alimentar de Angola em termos líquidos até 1973 - pelo papel que pode ter na redução do peso do petróleo no Produto Inter¬no Bruto. Como durante mais de trinta anos es¬ta questão esteve longe do centro do debate na¬cional - excepto quando os preços do petróleo baixaram para níveis considerados inquietantes -, não há hoje ideias claras sobre a forma de li¬dar com ela.

Entendo que o desenvolvimento ou é sustentá¬vel, isto é, continuado e com condições para se ampliar e reproduzir, ou não é desenvolvimento. Para isso é fundamental que se tenha em consi¬deração, entre outros, o factor humano. Ignorar os sistemas de produção praticados pelos campo¬neses, que têm garantido, em situações normais, a sua sobrevivência, é um erro crasso. O aumento da produção em condições como as de Angola pode ser encarado sob duas diferen¬tes correntes de pensamento. Uma, a "produtivista", põe o foco no resultado, isto é, na produ¬ção em si, e esteve na base da chamada revolução verde, que permitiu progressos espectaculares na produtividade, mas não acabou com a fome nos países onde ocorreu, excluiu a mulher ou re¬duziu o seu papel no processo de tomada de de¬cisões relativas à produção agrícola e tem pro¬vocado sérios danos ambientais. Outra corrente é a "ecológica" ou "sustentável", que dá ênfase ao processo de transformação gradual dos siste¬mas tradicionais, em que o produtor, o elemento-chave, ganha consciência da necessidade de tal transformação, e tem mais preocupações com a preservação do ambiente. Ela preconiza a evolu¬ção para os chamados sistemas agro-silvo-pastoris, baseados na associação de culturas anuais ou fruteiras, com a criação de gado e a exploração florestal, pois, se o agricultor tiver gado e explo¬rar a floresta - natural ou plantada - poderá dis¬por de matéria orgânica para melhorar a estru¬tura dos solos, reduzir a sua acidez e defendê-los contra a erosão, males que afectam a produção em quase todo o território narional e contribuem para a degradação ambiental. Ao contrário do que é hoje o pensamento dominante em Angola, esta linha - e não a produtivista - é considera¬da mais "moderna" ou avançada a nível mundial, e não é de estranhar que os chamados produtos orgânicos sejam os mais caros em qualquer su¬permercado dos países desenvolvidos. Ao mesmo tempo, ela confere menos dependência em rela¬ção aos mercados internacionais, o que se revela particularmente importante nos dias de hoje. Se se tivessem em conta os tais saberes e siste¬mas, muitas das catástrofes alimentares pro¬vocadas por irregularidades climáticas seriam evitadas. É verdade que os actuais sistemas de produção são menos produtivos que os "moder¬nos", mas são claramente social e ecologica¬mente mais sustentáveis. Nestes últimos anos os camponeses que semearam milho, massango e feijão de variedades mais resistentes à seca e às pragas e doenças, ou plantaram mandioca ou batata doce, estiveram mais protegidos contra a seca. Não foi por acaso que este ano, nas provin¬cias de tradição de mandioca - cultura que nun¬ca mereceu atenção por parte da investigação no tempo colonial - não há tanta fome como nas produtoras de cereais com variedades conside¬radas mais produtivas. Os preços da fubá não su¬biram tanto nos mercados de Malanje como nos dos municípios da Huíla hoje considerados o ce¬leiro do País.

Uma instituição científica como o Centro Nacio¬nal de Recursos Fitogenéticos, que tem recolhido por quase todo o território, preservado e multi¬plicado material que reconhecidamente dá mais garantias aos pequenos agricultores, apesar de algumas melhorias recentes é praticamente ig¬norado, e só a persistência dos seus membros faz com que não caia no esquecimento total. Infeliz¬mente ainda há outras prioridades que se sobre¬põem à segurança alimentar de milhões de ango¬lanos.

Angola tem condições para evitar alguns dos ma¬les que a actual crise alimentar provoca, porque ainda está a tempo de definir uma política agrí¬cola mais autónoma e sustentável. Para isso tem de reflectir e debater sobre algumas das opções que se desenham e põem em perigo tal opção, como a criação de gado de larga escala e a produ¬ção de biocombustíveis sem que condições téc¬nicas e científicas estejam reunidas para tal. Vol¬tarei ao assunto.