quarta-feira, janeiro 07, 2009

HERMENÊUTICA E MEMÓRIAS /Eugénio Ferreira

HERMENÊUTICA E MEMÓRIAS

Por vezes fica-se com a sensação de que um Poder Político dominante num Estado formalmente de direito , porventura por via das condições concretas em que o processo histórico se desen cadeia , tem a veleidade de poder pôr e dispôr da verdade em nome de causas , de legitimida des adquiridas , de fontes de inspiração poético – lamechas , de”ouvidos”bem apurados ou de outros quaisquer aspectos . E mais , até do ponto de vista das teorias , das ideologias , das filosofias da vida e do espírito , parece ter-se a sensação de que algo que deveria ser um meio instrumental prático de convivência democrática , de troca de ideias viva e actuante perante concepções da vida tão diversas e por vezes tão opostas , redunda numa contradição entre algo que”somos nós e os nossos amigos” e outras pessoas , outras concepções , outras formas de ver a vida que são entendidas como estranhas , como perigosas , como caminhos ínvios , não muito aconselháveis , logo inexistentes .
Isto vem a propósito de dois “ pormenores “ que revelam com precisão, que a convivência democrática ,a vários níveis do nosso Estado de direito , formalizado e legitimado pelas eleições parlamentares do ano passado , não é tão fácil como aquilo que se diz algures . Um dos “por menores “ tem a ver com a ciência da interpretação das fontes documentais , isto é , tem por fim fazer compreender um texto na sua verda de e em toda a sua força expressiva . Dito de outro modo , por exemplo um historiador deverá ter o trabalho de ler e interpretar tudo o que é a ba se documental , seja avulso , fotográfico , relacionado com os códices ou com os livros e outros suportes , a fim de , sobre um determina do período da história ou sobre uma personagem su postamente importante de uma certa época de um lugar , difundir informação que seja um contributo para que as novas e futuras gerações conheçam as situações e as personagens que serão os suportes das várias facetas da His tória desse lugar . Que pode ser um país , uma al deia , um homem , um continente , um grupo social ou , porventura em casos como o de Ango la , o da gesta da libertação nacional . Ora um dos “ pormenores “ que tem a ver com a História de Angola relacionada com a libertação nacional , segundo os volumes sobre a História do MP LA publicados o ano passado , revela –nos , de modo bem interessante , que , certamen te por motivos que não têm a ver com a hermenêutica , que a origem do Movimento Popular de Liber tação de Angola – o partido que ga nhou as eleições 68 anos depois , aparece em 1940 numa primeira leitura hiper-cuidada , ou seja , tendo em conta o que deve ser a interpre tação do texto apresentado . Depois , nas leituras posteriores , porventura com um espírito onde a filosofia da agradabilidade passa a funcio nar com algum rigor , percebe-se que afinal o Movimento começa num determinado período , é um movimento geral , global , porventura mundializado , e a sua organização desencadeia-se alguns lustros depois . O outro “ pormenor “ é mais terreno , mais preciso ainda , e tem a ver com uma publicação , também difundida o ano passado , por sinal de um representante do Poder Político dominante , e que fala de me mórias sobre o período entre a chamada Revolução dos Cravos , desencadeada no centro do Poder Imperial Português e o ano miraculoso de final de todas as etapas – 1976 : é o livro do mui estimado pelo Nacionalismo camarada doutor Manuel Pedro Pacavira . Nesta publicação , cheia de actores , de actoras e de actrizes do processo histórico , relacionada exclusivamente com a luta de libertação desencadeada e impul sionada pelo MPLA , vem bem expresso um rol de factos que são , com toda a clareza , a visão de um experimentado militante que desde os anos 50 , pelo menos a ter em conta os Arquivos verificados por muitos interessados , sobre esses anos que levaram como diz nessa publica ção o Presidente da República ,” muitos Camaradas e Compatriotas” a inscreverem“ o seu nome nas páginas gloriosas da nossa História co mum “ . Ora , como pessoa que tem tentado conhecer a base documental existente sobre História de Angola , percebi que a intenção difun dida pelos profissionais do mesmo ofício , a ter em conta silêncios e omissões , afirmações e formas rebuscadas de difusão de informação pre cisamente tendo em conta as ge rações mais jovens e futuras , fiquei a compreender o seguinte : mesmo abstraindo da base do cumental que existe nos arquivos até 1974 , numa selecção política científicamente elaborada a fim de fortalecer não a diversidade de pontos de vista”dos Camaradas e dos Compatriotas” que , muitos deles conjunturalmente decisivos de e por muitas formas, foram pedras funda mentais para que a luta de libertação nacional , tal como ela se desencadeiou , triunfasse , mes mo assim , reparei que no livro publicado – e ainda bem ! – pelo Camarada doutor Manuel Pedro Pacavira , sabendo perfeitamente que todos os Camaradas são Compatriotas , as situações e persona gens da gesta de Libertação Nacional , numa contabilização rigorosa , não foram par ticipadas por Compatriotas que nunca foram ou quize ram ser Camaradas . Mas porque a interpretação das fontes documentais e até da própria vida como foi vivida , tem o seu quê de subjectiva – tem a ver com pessoas – e dado que situações , mudanças , alterações de estruturas são muito mais fáceis de detectar e também devem po der contar para se fazer História , neste caso de Angola – tem a ver com a relação entre as pessoas e os grupos , logo são factos muito mais objectivos e precisos , ficaria apenas por dois exemplos para que se possa demonstrar , in factum , que esta “ coisa “ da hermenêutica , se relacionada com a política , tem muito que se lhe diga .
Primeiro facto : o camarada doutor Manuel Pedro Pacavira diz, nas suas memórias, que o MDA que foi o Movimento Democrático de Angola , foi o “ movimento da Dra .Medina “ . Assim sendo , e por que essa é a sua interpretação – a que tem direito - não só sobrevaloriza o papel de uma personagem em tal movimento , como o articula , com clareza num leque de grupos que se constituiram em torno do MPLA , como ou tros também o fizeram . Acontece que , acreditando piamente nas palavras do Camarada doutor Manuel Pedro Pacavira , quando de facto e por via da hermenêutica , os historiadores verificarem alguns jornais coloniais – que nos dias de hoje não se sabe se estavam ao serviço da Libertação Nacional ou se eram lacaios do imperialis mo ao tempo - , verificarão que há algum tempo atrás , a quando do falecimento de An tónio Cardoso , se dizia que este tinha sido o Presidente do MDA . Normalmente , conota-se simbolicamente um Movimento com o seu chefe em certos estádios de desenvolvimento cultural . Assim , qualquer historiador ficará confuso se ler os jornais sobre o assunto . Mas há um do cumento elucidativo e fulcral, que demonstra que os Movimentos Democráticos formalmente integraram-se no MP LA no dia 10 de Março de 1975 , como se pode verificar , por exemplo , no Diário de Luanda do dia 11 sequente . Assim , dessa forma , a dúvida instalar-se –à , embora de forma alguma , como são factos relevantes apenas entre actores , actoras e actrizes secundários do processo de Luta de Libertação Nacio nal , possam ferir , de algum modo , uma clarificação sobre “ a evolução do MPLA desde o momento em que foi dilacerado pelas chamadas “ revoltas “ , até à conquista do poder político “ , na feliz afirmação do “ Camarada e Compatriota” Aldemiro Vaz da Conceição em Prefácio .
Segundo facto : a questão da “ Morte de Pedro Benge “ que levou o “cortejo fúnebre convertido numa grande manifestação popular foi a pé desde a Igreja de São Domingos ao cemitério de Santana , na Estrada de Catete...sendo acompanhada pelo então cónego Alexandre do Nasci mento que...depois de terminado o ofício religioso , expressa ra a vontade e disponiblidade de comparticipar dos esforços para a futura cons tituição de Angola “ . A ter em conta os jornais coloniais do tempo – e a visão do acontecimento por outros compo nentes do“povo angolano“, a começar pelo conjunto das pessoas que presenciaram a totalidade do acontecimento como o Artur das barbas - será invenção minha ? - , à luz dos futuros historiadores , por exemplo daqui a 20 anos , tendencialmente ninguém poderá exprimir , sem reservas , a descrição precisa , pois , embora tenha havido , no movimento populacional desencadeado , pessoas que se integraram a meio do percurso ,outras que o inicia ram e ficaram a três quartos do dito , outras de outros modos participando , quero crer que a marcha terá sido um pouco mais extensa do que aquela que é descrita . A não ser que, por via da luta contra o colonialismo , no caminho tortuoso que é sempre o da morte de uma pessoa , ainda por cima vilmente assassinada , se tenha estabelecido, porventura por decisão revolucionária à luz de todas as formas e” capas” de cisórias de “separação de águas “ , uma “tesoura“ simbólica para definir a luta dos colonizados a partir da Igreja de São Domingos contra o poder dos colonizadores e dos seus amigos a esse símbolo da cristandade chegados , a partir da Liga Nacional Africana .
Estes dois factos , são elucidativos de que a conexão entre “Angola e o Movimento revolucionário dos capitães de Abril em Portugal “ , subti tulo escolhido pelo Camarada Doutor Manuel Pedro Pacavira para fazer as suas memórias , do ponto de vista nacionalista excelentemente prefaciadas pelo Camarada Aldemiro Vaz da Conceição , continua viva . E constituem uma forma feliz e eficaz de, nas condições dificeis que o “ povo angolano “ atravessa , perante uma realidade em que não se sabe muito bem quem são , de facto , 34 anos depois , os lacaios do im perialismo , servir de suporte aos historiadores do futuro , a um plano ; e para as gerações mais novas e futuras , a outro plano ,como meio de verificação de que a política , a hermenêutica , a história real e a memória são as únicas formas que temos humanamente para nos entender mos na vida . Porquê?
Porque quando eu contar , já velhinho de oitenta anos , aos meus filhos , que eu , eivado de um sentimento de desejo de independência e de respeito , também pude presenciar factos como esses - tanto sobre o MDA como o do enterro de Pedro Benge , ver-me –ei na difícil posição de não conseguir distinguir , com a precisão sempre exigida a um licenciado em história , a estrita descrição dos factos tal e qual eles se de senrolaram com os delírios que , caquético , olhando porventura para um deus desconhecido à procura de um apoio que ninguém me dará , serei capaz de inventar para defender o meu ponto de vista . Será que a vida é só isto ? Bem haja Camarada Doutor Manuel Pedro Pacavira , descendente – a ter em conta a hermenêutica e talvez não a realidade real – de famílias proprietárias rurais no Golungo Alto , nos finais do sé culo XIX e primeiras décadas do século XX , segundo um códice do Arquivo Histórico Nacional !

Eugénio Monteiro Ferreira 060108 , dia de reis segundo o calendário não formal de uma República Laica .