terça-feira, janeiro 31, 2006

Uma verdadeira condecoração


Expulsao - Karipande

Amigos,A Equipa SanzalAngola vem desta forma tornar público que o membro Karipande foi expulso deste espaço, por comportamentos considerados reprováveis e inadmissíveis.Esta não é uma decisão tomada de ânimo leve, antes representa o culminar de um longo processo em que a ESA sempre tentou, por várias vias, o apaziguamento, como de seguida demonstramos.Perante uma escalada de provocações e insultos, e em simultâneo com o encerramento de uma série de fios, decidiu a ESA enviar, a 29 de Dezembro, uma mensagem ao Karipande e a outros nove membros dizendo que caso continuasse a haver um persistente e permanente clima de maledicência gratuita, teria necessidade de utilizar as ferramentas que entendesse incluindo a expulsão.Tendo o Karipande prosseguido com o mesmo tipo de comportamento criticável, a ESA decidiu enviar-lhe nova mensagem a 30 de Dezembro, informando-o claramente que seria a última solicitação para que a sua escrita correspondesse ao Acordo de Registo subscrito.A 11 e 12 de Janeiro o mesmo tipo de mensagem da Equipa, já então referida como "Última Solicitação", foi, pelas mesmas razões, enviada a três outros membros da SanzalAngola.Apesar das nossas mensagens, o membro Karipande continuou com o mesmo tipo de comportamento (o que nos levou a suspendê-lo temporariamente, juntamente com outros dois membros), alargando as provocações gratuitas e insultos a outros Membros que nunca tinham participado em qualquer discussão "política", e referências pejorativas a vários fios existentes.Se por um lado entendemos que às vezes, em fios mais polémicos, alguns membros se excedam na troca de mimos é intolerável a sistemática tentativa de "achincalhamento" de outros membrosPerante isto, nova mensagem foi enviada ao Karipande a 23 de Janeiro, desta vez por via email e a título mais pessoal reafirmando claramente e de uma vez por todas a "Última solicitação"Apesar de todos os nossos apelos e avisos, o Karipande prosseguiu na via do insulto e provocação, pelo que não nos resta outra opção que não seja a sua expulsão imediata!Nesta oportunidade, reafirmamos o nosso propósito em manter este espaço como um sítio de convívio e de amizade e não pactuaremos de forma alguma com qualquer tipo de comportamento que ultrapasse o mínimo do razoável e do admissível .Convictos de que é possível manter entre todos um diálogo com elevação, continuamos a desejar que todos se divirtam e passem momentos agradáveis.Saudações
__________________


Ser expulso deste site é um motivo de orgulho, porque de facto nunca me verguei à bandidagem que o colonialismo pariu.

"APLICAÇÃO Se tiver uma planta em casa, faça um cataplasma a partir da folha inteira e aplique-o, o máximo de tempo possível, sobre a testa ou sobre a nuca, ou mesmo em cima da cabeça, se for esta a zona mais afectada. Na ausência da planta caseira, espalhe o gel de Aloés, na testa, nas têmporas, na nuca, renovando a aplicação ao fim de 4 horas, se a dor não abrandar. Para maior eficácia ainda, misture ao gel um pouco de aspirina em pó. Beba igualmente o gel: três colheres de sopa logo que a dor aparece, e mais três, ao fim de 4 horas, se a dor persistir. Em princípio, não terá necessidade de um analgésico farmacêutico, mas se a dor for renitente, tome aspirina ou paracetamol, mas apenas metade ou um quarto da dose habitual. Se tem tendência para a enxaqueca, não espere pelas crises. Quinze dias por mês, faça uma cura de gel de Aloés(uma colher de sopa, duas vezes por dia) e tome matricária em infusão ou em drageias. Em Portugal, a matricária é conhecida pelo nome de Artemisa-bastarda-dos-ervanários." Isto é uma citação do nosso mui querido Dr. Bená.
Bem, eu hoje não venho para aqui com merdas, pq de facto quero de vez deixar de " dar perolas a porcos".Apesar de ter sido expulso, duma forma soez, pidesca e caracteristica do espírito de bufagem que por ali reina, o que de certa forma me dá algum estatuto de não querer em nada ser igual, a uma determinada corja de retornados, que me habituei a desprezar ainda eles eram serviçais do colonialismo (Sei que certos que nada tem a ver com o assunto,mas vão tomar estas palavras como dirigidas a si...por acaso na maioria dos casos não são, mas tb se de facto não sabem destrinçar as coisas, fiquem a lamuriar-se que bem merecem,embora por razões de perfeita ignorancia politica e ideológica).A tal fESAs usa um critério de fubeiro de mato...Se quiserem saber as razões aguardem por cenas dos próximos episódios...mas convenhamos, com o nivel da maioria dos moderadores espantar-me-ia se conseguissem ser pouco mais que basicos,como alias se revela no seu quotidiano de tomadas de posição.Não vou discutir a minha expulsão, já que ela estava determinada no próprio dia em que o boss (nome de comandante do crime organizado em certa marginalidade nos EUA) magnanimamente aceitou a entrada das pessoas...Eu disse-o então e não me enganei, nem no timing.Fomos a digestão fácil de um almoço, onde certos porcos foram comidos por alguns quejandos.O que neste momento está em causa é o facto de uma cambada de FDPs, virem a terreiro dizer coisas a respeito de alguem que não esta lá para se defender, com a complacencia nojenta de certos intestinos que moderam a sanzala. Vem o beóceo do calhau justiceiro, o tal do cartão dourado que grava conversas, e que é do género do massa-bruta;Vem um e.t. da Gabela a quem nunca dei palha pq não passa de um jerico, o que quer dizer que quase nem para carne de animais do circo chega qd for abatido;Vem um mulah, que tb já foi de vela, um castelo, que é um local onde não há casas de banho, pelo que se caga nos cantos, vem um electricista que é racista e xenófobo,vem uma quantidade de tipas que presumo serem mal comidas, senão não perdiam tanto tempo no pc,vem os veteranos da mama, onde avultam os vendedores de aloés da cobra,vem as madrinhas em busca de varinhas que pelo menos uma vez na vida talvez se magiquem na introduzidela, enfim, vem todos alinhadinhos, a cantarem dinos diversos, e as fesas continuam a manter os fios, onde podem zurzir sobre quem não está lá para se defender. Por tudo isto e como sei que vem aqui muita gente bisbilhotar, fica aqui o que me vai na alma...
AssinoKaripande
PS:ahaahahahah...Anda um comunicado nas conversas de café...E eu que sempre escrevi mais na diáspora...por isso colocaram lá o comunicado!!!Eheheheh

Fernando Pereira

PS2:Cumpre-me pedir desculpa aos frequentadores normais deste espaço de cultura, e que nada tem a ver com o site "sanzalangola", um site que é o exemplo acabado de um colonialismo que enterrámos em 11 de Novembro de 1975.

terça-feira, janeiro 24, 2006

Angola/Processos Politicos


ANGOLA NA DÉCADA 1950-1960

UMA MAIORIA MARGINALIZADA

Por pouco elaborada que seja, a análise do contexto económico e social da época ganhará nitidez se partirmos da base demográfica: quem era e como se repartia a população de Angola?

Em 1950 o censo populacional indicou 4 145266 habitantes, dos quais 4 036 687 negros, 78 826 brancos e 29 648 mestiços. Dos negros, 30 089 eram classificados como "civilizados" (ou "assimilados"), e nos mestiços esse número era de 26 335, o que perfazia 56 424. Os restantes eram "indígenas", categoria jurídica cujo significado e implicações analisaremos mais adiante.
O Censo de 1960(1) registou 4 830 449 habitantes, sendo 4 604 362 negros, 172 529 brancos e 53 392 mestiços (e 166 "outros"). A grande diferença no número de brancos corresponde ao crescendo da imigração portuguesa nesta década, mas o "salto" no número de mestiços terá origem sobretudo na diferença de critérios de classificação "racial", aliás sempre duvidosos. A "mistura de raças", antes oficialmente considerada um "mal inevitá­vel" e pouco honroso, em 1960 aparecia valorizada como argumento contra os detractores do colonialismo português. Quanto ao estatuto legal, os ditos "civilizados" (vulgo "assimi­lados") somavam menos de 100 000 no total de negros e mestiços.
Na classificação etnolinguística, apesar de podermos colocar reservas aos critérios utili­zados, verifica-se que os de língua Umbundu (38,1%) e os de língua Kimbundu (23,1%) representavam em conjunto cerca de 61 % da população angolana "indígena"; somados aos Bakongo (13,6%), eram perto de 75%. Mais do que o peso quantitativo destes grupos, importa realçar o facto de terem sido cristianizados em maior escala do que outros, a partir sobretudo de finais do século dezanove. Daí decorreu a emergência de elites letradas ligadas aos Seminários católicos e às Missões, nomeadamente às missões protestantes (Congregacionais, Metodistas e Baptistas, respectivamente), o que teve consequências também na história política angolana, como aliás se poderá ver pela identificação dos envol­vidos nos processos políticos de que trata este livro. É justo considerá-las elites relativamente ao conjunto da população dita "indígena", o que não obsta a que se encontrassem nos estra­tos sociais inferiores da sociedade colonial, vista no seu todo. Os Protestantes desenvolviam maior actividade nos meios rurais, mas no caso dos Metodistas a influência no eixo Luanda­-Malanje explica o protagonismo de crentes da "Missão Americana" (assim conhecida em Luanda) nos acontecimentos que ocorrerão na capital, a par dos Católicos, sendo que estes se estendiam pelo país e tinham clara supremacia numérica em todas as cidades.
Os dados de 1960 confirmam o predomínio do Cristianismo em Angola, mas também grandes diferenças regionais na sua implantação: no conjunto da população residente, 68% afirmavam-se cristãos (51 % católicos e 17% protestantes), porém no Huambo e no Uíje ultrapassavam os 95% (Huambo: 69% de católicos, 27% de protestantes, Uíje: 49% de católicos e 49% de protestantes), enquanto no Bié eram 74 %, no Kwanza-Sul e em Malanje não chegavam a 50% e noutros locais ainda menos. No interior dos "distritos", grandes variações acompanhavam a maior ou menor influência urbana e dos centros missionários. Lembremos que, no panorama religioso da colónia na época, salvo raras excepções, os que não eram cristãos seguiam as concepções religiosas ancestrais.
A população repartia-se de forma muito desigual no território (menos do que se passa hoje, apesar de tudo), sendo o Huambo o distrito mais populoso, com 597 332 habitantes, enquanto Luanda (Luanda e Bengo actuais) tinham 346 763 habitantes, a maioria dos quais concentrados na capital. Grandes extensões de Angola eram subpovoadas em relação às suas potencialidades económicas: entre o máximo no Huambo (19,5 hab. /Km2) e o mínimo no Kwando Kubango (0,59 hab./Km2), a média era inferior a 4 habitantes/Km2.
A distribuição do povoamento europeu é elucidativa: segundo o mesmo Censo, 30% dos brancos estavam na região de Luanda, um pouco mais de 40% espalhavam-se por Benguela, Huambo, Huíla e Namibe e os outros 30% cobriam irregularmente o resto. Como ao povoamento branco estavam associados, nessa altura, os maiores índices de urbanização, o desenvolvimento comercial, as poucas indústrias transformadoras existentes, o melhor acesso a serviços de saúde, a escolaridade acima do nível primário etc., compreende-se a relação entre esses dados e os notórios desequilíbrios regionais no que dizia respeito a infraestruturas económicas e oportunidades de acesso a serviços.
Em 1960 Angola continuava a ser um país eminentemente rural. No entanto, para uma colónia onde em 1940 apenas 5,4% da população fora dada como "urbana", os 11% de 1960 (cerca de meio milhão de pessoas) representavam urna progressão que, apesar de mais lenta que noutras colónias africanas, não se pode menosprezar.
O Censo retrata a pequena dimensão das cidades e vilas de Angola: considerados "aglomerados urbanos" os que tinham mais de dois mil habitantes, contavam-se apenas 29 (vinte e nove!), dezanove dos quais com menos de 10 000 habitantes. Somente dezasseis dos centros urbanos eram "cidades", onde se concentrava 84% da população urbana de Angola. À excepção de Luanda (perto de 225 000 habitantes) apenas o Lobito e o Huambo (Nova Lisboa) ultrapassavam os 30 000 habitantes, sendo o Lobito a segunda cidade de Angola, com mais de 50 000 habitantes - a actividade portuária era a grande responsável por esse facto e a maioria da sua população era recente, originária do centro do país. A industrializa­ção do planalto central nos últimos anos coloniais, por sua vez, levará a cidade do Huambo a ultrapassar o Lobito no Censo de 1970.
Os "distritos" de Luanda, Benguela, Huambo, Bié e Kwanza-Sul apresentavam, em termos absolutos, maior volume de população urbana, sobressaindo a importância do eixo Benguela-Bié, mais densamente povoado e favorecido pelo Caminho de Ferro de Benguela. Mas quanto à percentagem de urbanos no total de habitantes, as zonas servidas pelos portos de Luanda, Lobito e Namibe e respectivas linhas férreas prevaleciam claramente sobre o interior e o resto da faixa litoral: o "distrito" de Luanda tinha 65% da sua população em zona "urbana", o de Moçâmedes (Namibe) tinha 32%, no de Benguela eram 19%. Todos os outros apresentavam menos de 10% de "urbanos": Cabinda 8%, Kwanza-Norte 7%, Kwanza-Sul 7% e percentagens ainda menores no resto do país.
Luanda era, à escala angolana, a "grande cidade", onde vivia quase metade da população urbana de Angola. Em vinte anos, registara um crescimento de 268%, passando de cerca de 61 000 habitantes em 1940 para quase 142000 em 1950 e perto de 225 000 em 1960. Mas foi também um crescimento peculiar: de 1950 a 1960 a população negra passou de cerca de111 000 para cerca de 155 000 e a população de mestiços pouco se alterou, mas a população branca passou para mais do dobro: de 14,6% dos citadinos em 1950 (20 730 pessoas) ela cresceu para 24,7% do total (55 567) em 1960, reflexo directo da corrente migratória de Portugal para a colónia na década 1950-1960. Para comparar, refira-se que em Léopoldville/ /Kinshasa, com quase o dobro dos habitantes, os cerca de 30 000 brancos não ultrapassavam 7,5% da população do aglomerado urbano. O aumento substancial de europeus em Luanda veio agravar as clivagens raciais na vida da cidade, reduzindo ainda mais os espaços de convivência plurirracial (com efeitos visíveis nas escolas, igrejas, casas de espectáculos, clubes desportivos...) e deslocando para a periferia muitas famílias negras e mestiças (e não apenas as mais pobres), através de decisões administrativas ou pela especulação financeira com os terrenos e consequente subida das rendas de casa.
Na população luandense, dos que eram naturais de Angola (80% do total) mais de
metade viera de outros pontos do país e grande parte destes residia na cidade há poucos anos. Entre os "indígenas" residentes, no ano de 1960 apenas 20% não eram originários de áreas de língua Kimbundu (situação que não se vai manter nas décadas seguintes). Isto será relevante para as ligações entre Luanda e outras regiões, tanto na difusão de ideias como na busca de refúgio face à repressão. e)
Por essa época, na colónia belga que recebia importantes fluxos migratórios de Angola, a cidade de Léopoldville (Kinshasa) tinha já 400000 habitantes, dos quais eram originários do norte de Angola (maioritariamente Bakongo) cerca de 60 000, ou seja, mais do que toda a população do Lobito... Estatísticas oficiais de 1957 sobre a "mão-de-obra indígena" no conjunto de Léopoldville mencionavam 20,8% dessa população como "angolanos".(3) Isto ajuda-nos a compreender a importância das comunidades angolanas fixadas em Léopoldville (Kinshasa), bem como nas cidades portuárias do Congo/Kinshasa (Matadi, nomeadamente) e do Congo/Brazzaville (Ponta Negra), com comunicações facilitadas com os portos ango­lanos. Não pode surpreender-nos a evidência de correspondência e de contactos pessoais múltiplos nos anos 50, cruzando fronteiras, bem como o papel decisivo que jogaram os emigrados, os refugiados e os residentes temporários nos vizinhos Congos, em diferentes momentos do processo de luta pela independência do país.
Aliás, a emigração angolana não atravessava apenas a fronteira norte. Do centro, do
leste e do sul partia-se para o Sudoeste Africano (Namíbia), a África do Sul, a área mineira do "copperbelt" da Rodésia do Norte (Zâmbia) e também terras do Congo mas, neste caso, o destino era sobretudt} o Katanga (Shaba), cujo crescimento industrial e urbano era muito superior ao de Angola. No final dos anos 50, mesmo os cálculos mais modestos indicam cerca de 250 000 angolanos fora das fronteiras de Angola, temporariamente ou não. Esses fluxos e refluxos populacionais e o seu impacto em diferentes sectores da sociedade ango­lana, rural e urbana, continuam por estudar.
Depreende-se dos parágrafos anteriores que a importância das cidades e vilas e das novas formas de diferenciação e de mobilidade social que nelas possam ter tido lugar não derivam, no caso angolano, do peso numérico da população citadina, nem de qualquer grande dinamismo económico até 1960, mas da importância qualitativa das experiências urbanas, dentro e fora do país, mais antigas ou mais recentes, conforme os casos. Como veremos mais adiante, Angola não conhecera um crescimento industrial que originasse um grande proletariado urbano e a população citadina não branca distribuía-se maioritariamen­te entre o que poderíamos classificar de pequena-burguesia e de semi-proletariado, com nítida predominância do sector de serviços. Como exemplo da diversidade de profissões e ocupações urbanas, podemos referir tipógrafos, mecânicos, serralheiros e outros operários e artesãos especializados, funcionários dos escalões mais baixos ou intermédios (os escalões superiores estavam vedados a negros e mestiços desde 1929), pescadores, peixeiras, empre­gados comerciais, enfermeiros, trabalhadores da marinha mercante e dos caminhos-de-ferro, professores, catequistas, motoristas, alfaiates, quitandeiras, estivadores, criados, serventes da construção civil, vendedores ambulantes, lavadeiras etc.
Era nos espaços urbanos que mais facilmente conviviam pessoas de origens diferentes, se cruzavam informações, culturas e influências ideológicas variadas, se criavam novos hábitos e também novas expectativas de ascensão social que, bloqueadas pelo domínio colonial de uma minoria, se exprimiam cada vez mais em reivindicações independentis­tas. A consciência de uma identidade colectiva própria, oposta ao domínio português e projectando-se numa nação à escala do país, ou seja, a génese e a formulação do moderno nacionalismo angolano tiveram início em meios urbanos. Mas, sem dúvida, o vaivém de informações e de ideias entre diferentes espaços sociais "rurais" e "urbanos" era assegurado por uma densa rede de relações, através dos laços familiares, das migrações por razões laborais, das igrejas ou da circulação de certos grupos profissionais como, por exemplo, os enfermeiros ou os ferroviários.
Um aspecto crucial para compreender a sociedade de então era o baixíssimo nível de instrução que, naturalmente, reduzia o alcance da literatura, da informação e da propaganda escritas. A carência de oportunidades escolares, mesmo básicas e técnico-profissionais, era um dos grandes factores de ressentimento contra o domínio português, recorrente no enuncia­do de queixas dos nativos, que não se coibiam de apontar o contraste com a colónia belga.
É fácil resumir a situação:(4) em 1958 Angola tinha 96,97% de analfabetos (diz o Anuário Estatístico do Ultramar), percentagem escandalosa mesmo na África colonizada. Quanto ao ensino básico, em 1959 havia ao todo 17 167 alunos no ensino primário oficial, 10 324 no ensino primário das Missões católicas e 65 652 alunos no "ensino de adaptação" dessas Missões. Desde os anos vinte que o regime colonial separara a instrução dos "indígenas" da dos "civilizados" e, na mesma lógica, em 1950 regulamentou a "Instrução Rudimentar" dosindígenas, que passou a "Ensino de adaptação" após 1956: significava três anos de escola antes de poder entrar no ensino primário propriamente dito, o que raros conseguiam. A instrução dos "indígenas" competia às Missões Católicas, pelo Estatuto Missionário (1941) decorrente da Concordata entre Portugal e o Vaticano (1940). Outros que o ministrassem,
como no caso das Missões protestantes, com alguns milhares de alunos, faziam-no como ensino particular.
O conjunto do ensino secundário na colónia, em 1959, não ultrapassava 3 523 alunos. Quanto ao ensino superior, foi inexistente até 1963.
No ano lectivo de 1960-61, eram 119 234 (2,4% da população) os inscritos em todo o ensino em Angola, incluindo o de "adaptação", o primário, o secundário e médio, o da formação de professores, enfermeiros etc. Como termo de comparação, em 1972-73 esse número estava perto de 600 000 (mais de 10% da população) e a explosão escolar após a Independência elevou para dois milhões em 1983-84 o número de angolanos a estudar (antes de entrarmos na fase de regressão do acesso à escola que ainda caracteriza tristemente a situação actual).

UMA ECONOMIA ESTRANGULADA

É consensual falar-se em estrangulamento e impasse na economia de Angola no início da década de cinquenta, sem nítidas melhorias nos anos imediatos. A situação só mudará signifi­cativamente na década seguinte, com a política colonial portuguesa a inflectir fmalmente em direcções que estimulavam o crescimento económico da colónia, a par da mobilização militar e das alterações na legislação, para travar o avanço da luta de libertação nacional.
Não obstante, os anos cinquenta testemunharam um certo investimento nas infra-estru­turas de comunicações e transportes e alguma expansão na construção civil, acompanhando o aumento da imigração branca, que tendia a ampliar o mercado local e a diversificar as actividades económicas, muitas vezes em desfavor de negros e mestiços que viam reduzidas as suas oportunidades de trabalho pela concorrência dos recém-chegados.
A situação de estagnação económica decorria das próprias características da exploração colonial, agravadas neste caso pela fraqueza económica da metrópole (que explica, aliás, a diversidade de clientes e de fornecedores da economia angolana). Escasseavam capitais para investir, a poupança local quase não existia, a pobreza das populações não dinamizava o mercado, faltavam equipamentos, faltavam técnicos e pessoal qualificado. Estes também não abundavam em Portugal e os que ali se formavam não tinham razões para emigrar para uma Angola distante e considerada insalubre, terra de degredo até pouco tempo atrás. Cerca de 40% dos brancos residentes em Angola em 1950 nunca tinham frequentado a escola e outros 40% não tinham passado além da 43 classe.(5) Para os Portugueses radicados na colónia o comércio continuava a ser a actividade principal, do import-export ao pequeno
comércio urbano e rural, muito disseminado, onde a sua presença explica a quase inexistên­cia de estabelecimentos comerciais de Angolanos.
Nas condições de baixo nível tecnológico, o trabalho quase gratuito mantinha-se como motor principal da economia, deslocando quantitativos importantes de trabalhadores para as plantações, minas e pescarias, ou mesmo para serviços municipais. A escassez e falta de qualificação da mão-de-obra disponível eram assim "compensadas" pela sobre-exploração das comunidades rurais, quer dos que partiam quer dos que ficavam, nomeadamente as mulheres, sobre quem recaíam tarefas mais pesadas e maiores responsabilidades. A legis­lação laboral (desde o "Regulamento do Trabalho dos Indígenas das Colónias" de 1899) permitia amplo recurso ao trabalho forçado dos colonizados, fosse "compelido" e "correc­cional", fosse "em obras de interesse público" (incluindo mulheres e crianças), fosse pelo "contrato" ou recrutamento dos homens através dos chefes das aldeias, muitas vezes com a conivência ou intervenção (ilegal, diga-se) da autoridade administrativa.
Em meados da década de cinquenta, as indústrias de Angola que absorviam mais força de trabalho eram, de longe, a exploração mineira e a produção açucareira, vindo a seguir a pesca e derivados e começando a ganhar vulto a exploração de madeiras em Cabinda e no Moxico. A legislação proteccionista do Estado Novo, versão moderna do "pacto colonial", aplicava as regras do "condicionamento industrial" (decreto 26 509 de 1936), que só aceitava nas colónias as indústrias indispensáveis, que não fizessem concorrência à metró­pole. Nesse quadro, a industrialização de Angola reduzia-se a actividades extractivas (com destaque para os diamantes) e uma débil indústria transformadora, dependendo de Portugal e de outros países para a maior parte dos produtos manufacturados. Até 1940, a produção local respondia apenas pelos derivados de peixe, açúcar, álcool e sabão. Porém a 11 Guerra Mundial impôs sérias dificuldades às importações e foram surgindo indústrias do ramo alimentar, mobiliário, cerâmica, curtumes, tintas e vernizes. Inclusivamente, foi autorizada a primeira fábrica de cerveja (a Cuca, em 1946), contrariando a anterior proibição de fabrico de bebidas alcoólicas para proteger os vinhos portugueses.
As exportações de Angola assentavam tradicionalmente no sector agrícola (milho, café, algodão, óleo de palma, sisal) e nos diamantes. O café tomou-se o mais valioso desses produtos, ultrapassando o milho em 1942 e os diamantes em 1946, mantendo-se imbatível à cabeça das exportações angolanas até 1973, quando o petróleo passou para o primeiro lugar (nos anos cinquenta, a exploração petrolífera apenas começara, com a belga Petrofina). A alta de preços do café depois de 1945 veio a ter consequências dramáticas no noroeste de Angola, onde a pressão da imigração europeia e os abusos na obtenção de terras criaram graves tensões sociais e raciais, dramaticamente reveladas em 1961. A expansão da cafeicul­tura foi também responsável pela intensificação de recrutamento de mão-de-obra nas terras do centro de Angola.

1 Direcção dos Serviços de Economia e Estatística Geral, 3° Recenseamento Geral da População - 1960, Luanda, Repartição de Estatística Geral, vols. I-IV, 1964-67.
2 Estudo sociológico fundamental sobre Luanda na década de 50 é o de Christine MESSIANT (1989) "Luanda (1945-1961): Colonisés, société coloniale et engagement nationaliste" in «VIlas» et «cidades» - Bourgs et villes en Afrique lusophone, Michel Cahen (dir.), Paris, L'Harmatlan, pp. 125-199.
3 Charles Didier GONDOLA (1996), Vllles miroirs. Migrations et identités urbaines à Kinshasa et Brazzaville, 1930-1970, Paris, L'Harmatlan, p.298.
4 Para questões de educação e imprensa, ver o estudo de Eduardo Sousa FERREIRA realizado para a
UNESCO em 1973: O fim de uma era - o colonialismo português em Africa, Lisboa, Sá da Costa, 1977.
5 Cf. Gerald BENDER (1976), Angola sob o domínio português - mito e realidade, Lisboa, Livraria Sá da Costa Ed., p. 323, usando dados do Censo populacional de 1950.



Livro de Maria do Carmo Medina

Introdução Histórica Da Drª Maria da Conceição Neto

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Retornar...

Passara por Lisboa há dezoito ou vinte anos a caminho de Angola e o que recordava melhor eram as discussões dos pais na pensão do Conde Redondoonde ficaram entre tinir de baldes e resmungos exasperados de mulher. Lembrava-se da casa de banho colectiva, com um lavatório de torneiras barrocas imitando peixes que vomitavam soluços de água parda pelas goelas abertas e da altura em que topou com um senhor de idade, a sorrir na retrete de calças pelos joelhos urinava nos lençóis por medo de encontrar o cavalheiro do sorriso atrás dos peixes oxidados ou as cabeleiras que rebocavam notários corredor adiante, baloçando a chave do quarto no mindinho. E acabava por adormecer a sonhar com as ruas intermináveis de Coruche, os limoeiros gémeos do quintal do prior e o avô cego, de olhos lisos de estátua, sentado num banquito à porta da taberna, ao mesmo tempo que uma manada de ambulâncias assobiava Gomes Freire fora na direcção do Hospital de São José.No dia do embarque, a seguir a uma travessa de vivendas de condessas dementes, de lojas de passari¬nheiros alucinados e de bares de turistas onde os in¬gleses procediam à transfusão de gin matinal, o táxi deixou-nos junto ao Tejo numa orla de areia chamada Belém consoante se lia no apeadeiro de comboios pró¬ximo com uma balança de uma banda e um urinol da outra, e ele avistou centenas de pessoas e de parelhas de bois que transportavam blocos de pedra para uma construção enorme dirigidos por escudeiros de saia de escarlata indiferentes aos carros de praça, às camionetas de americanas divorciadas e de padres espanhóis, e aos japoneses míopes que fotografavam tudo, conversando numa língua bicuda de samurais. Então poisámos a bagagem no terreiro, por cima dos agapantos que as mangueiras mecânicas aspergiam em impulsos circulares, perto dos operários que trabalhavam nos esgotos da alameda que conduzia ao estádio de futebol e aos prédios altos do Restelo, de tal modo que os tractores dos cabo-verdianos se cruzavam com carroças de túmulos de infantas e de pilhas de arabescos de altares. Passando por uma placa que designava o edifício incompleto e que dizia Jerónimos esbarrámos com a Torre ao fundo, a meio do rio, cercada de petroleiros iraquianos, defendendo a pátria das inva¬sões castelhanas, e mais próximo, nas ondas frisadas da margem, a aguardar os colonos, presa aos limos da água por raízes de ferro, com almirantes de punhos de renda apoiados na amurada do convés e grumetes encarrapitados nos mastros aparelhando as velas para o desamparo do mar que cheirava a pesadelo e a gardénia, achámos à espera, entre barcos a remos e uma agitação de canoas, a nau das descobertas.O pai morreu de escorbuto antes do Cabo Bojador ao darem pela proa com uma água tão tranquila como o pó das bibliotecas, e apodreceram um mês, comendo castanhas e carne salgada, até o vento estremecer o casco e empurrar uns contra os outros os pingentes de lustre dos marinheiros de uma revolta abortada enforcados nas enxárcias, depenados por gaivotas e milhafres atlânticos. Depois de sete amotinações sangrentas, onze assaltos de baleias extraviadas, missas incontáveis e um temporal idêntico aos suspiros de Deus na sua insónia pedregosa, um gajeiro berrou Terra, o mestre firmou o óculo no castelo da popa e lá estava a baía de Loanda invertida pela refracção da distância, a fortaleza de São Paulo no cume, traineiras de pescadores, uma corveta da Armada, damas que tomavam chá sob as palmeiras e fazendeiros engraxando os sapatos enquanto liam os jornais nas pastelarias das arcadas.E agora que o avião se fazia à pista em Lisboa espantou-se com os edifícios da Encarnação, os baldios em que se ossificavam pianos despedaçados e carcaças rupestres de automóvel, e os cemitérios e quartéis cujo nome ignorava como se arribasse a umacidade estrangeira a que faltavam, para a reconhecer como sua, os notários e as ambulâncias de dezoito anos antes. Tinha demorado uma semana com a mulata e o miúdo na sala de embarque do aeroporto de Loanda, estendidos no chão, enrolados em mantas, roídos de fome e de vontade de urinar, numa confusão de malas, sacos, crianças, soluços e odores, na esperança de vaga para fugir de Angola e das metralhadoras que todos os dias cantavam nas ruas brandidas por negros de camuflado, bêbedos de cálices de after-shave e autoridade. Um chanceler que consultava pa¬péis e pulava sobre os corpos deitados pingava um nome de hora a hora, e por detrás dos vidros milícias da UNITA de pulseiras de crina e lanças emplumadas, orientados por conselheiros americanos e chineses, vigiavam-nos sob os tubos de flúor do tecto.Em vez do labiríntico mercado da manhã da partida, a seguir aos palácios das condessas maníacas e aos bares de sombras lúgubres dos estrangeiros anémicos, em vez da praia do Tejo onde erguiam o mosteiro e dos pedreiros talhando o calcário a grandes golpes de maço, em vez dos bois e das mulas das carroças de carga e dos arquitectos a gritarem para os ajudantes endechas parecidas com a fala dos criados dos restaurantes galegos, em vez das vendedeiras de ovos e frangos e pargos doirados e miniaturas de chaminés do Algarbe e quinquilharias de latão, em vez da claridade de lágrima das cebolas nos tabuleiros de madeira, dos ardentes poderes ocultos das ciganas que exaltavam as virgens outonais com promessas de amores de vice-reis, em vez das furgonetas de pára-brisas azuis dos turistas e das caravelas e dos cargueiros turcos sob a ponte, enxotaram-me para um miserável edifício de cimento com painéis de voos nacionais e internacionais a pulsarem ampolas coloridas ao lado do free-shop dos uísques. Uma máquina de vender chocolates e cigarros estremecia de febre a um canto, vomitando caramelos após uma complicada digestão de moedas, e os passageiros do avião alinhavam-se em fila como nas mercearias, nas padarias e nos talhos pilhados de Loanda, em busca do arroz, do pão e da carne que não havia mais, somente poeira e côdeas e gordura e um empregado que a vassoura não levara a abanar a cabeça ao balcão apontando com o dedo as vitrinas vazias. E lembrou-se dos entardeceres espa¬voridos dos últimos tempos de Angola, dos moleques que assaltavam os escritórios e os apartamentos do centro, das fachadas rombas de balas e das beneméritas do Bairro Marçal sem clientes, oferecendo a ninguém as coxas de sereias órfãs nas vielas onde os faróis dos jipes se aparentavam às lanternas traseiras dos comboios.Os que regressavam consigo, clérigos, astrólogos genoveses, comerciantes judeus, aias, contrabandistas de escravos, brancos pobres do Bairro Prenda, do Bairro da Cuca, abraçados a volumes de serapilheira, a malas atadas com cordéis, a cestos de verga, a brinquedos quebrados, formavam uma serpente de lamentos e miséria aeroporto adiante, empurrando a bagagem com os pés (na faixa reservada aos passageiros em trânsito passavam islandeses altos e desgrenhados como pássaros de rio) na direcção de uma secretária a que se sentava, em um escabelo, um escrivão da puridade que lhe perguntou o nome (Pedro Álvares quê?), o conferiu numa lista dactilografada cheia de emendas e de cruzes a lápis, tirou os óculos de ver ao perto para o examinar melhor, inclinado de banda no poleiro de fórmica, passeou o polegar errático no bigode e inquiriu de repente Tendes família em Portugal?, e eu disse Senhor não, muito depressa, sem pensar, porque a minha velha se finou de icterícia há seis anos e dos tios que aqui permaneceram quase não me recordo ou não me recordo nunca, ignoro se ficaram em Coruche e se ficaram onde moram, com quem moram, quantos filhos têm, se estão vivos sequer. Guardo o perfil vago de um primo a chegar de licença fardado de recruta, pisando as alfaces da horta com as botas cruéis, mas por exemplo a casa, que é que quer, sumiu-se-me, salvo o espelho do vestíbulo comprado na feira de Almeirim entre choro de leitões e tambores de saltimbancos, que deformava os rostos e torcia os gestos em ondulações embaciadas, devolvendo a cada um a sua face secreta e genuína, aquela que apenas a solidão do sono ou o abandono do amor finalmente revelam. Lembro-me dos invernos com uma sementeira de alguidares e panelas no soalho a fim de receberem a chuva que descia em ampulheta das fissuras do tecto, e, mais recuada no tempo, da madrinha do meu pai a coser peúgas e ceroulas sob a cerejeira estéril das traseiras, que erguia uma das patas do tanque de lavar a roupa com a força de bícepes das raízes. E esta memória remota trouxe-lhe de súbito ao nariz o aroma de bosta de vaca dos derradeiros meses, desde que a telefonia anunciou a inde¬pendência de Angola decretada por Sua Majestade, no rescaldo de um motim, durante as cortes de Lixboa, o odor do suor, da di arreia, do medo, quando colávamos em pânico os armários aos caixilhos porque daqui a nada uma coronha desventra o aparador, daqui a nada uma sapatilha esmaga o tapete a rir-se, . daqui a nada o MPLA principia a disparar ao acaso e as nucas estoiram como figos numa pasta de carne branca e de grainhas vermelhas, o que julgaria o Infante, se vivo fora, lá na escola de Sagres, desdobrando mapas e consultando estrelas frente às janelas do mar, enquanto os seus capitães perseguiam dinamarquesas nas praias de Albufeira e Gil Eanes se apresentava em Lagos, pingando como um noivo exausto, com um ramo de florinhas murchas na mão. Disse Nem por sombras e pensou Claro que não, visto que em dezoito anos de África não recebi uma carta, um postal, um presunto, um retrato sequer. Quase que aposto que morreram todos há séculos, sepultados sob o lajedo das igrejas com o nome em latim apagado por solas de noviças, acomodados no tecido cor de pérola dos caixões, vestidos de casacos de xadrez, de xailes lilases, de blusas claras, de mãos postas e malares agudos como as estátuas jacentes nas criptas das capelas. A minha família de queixo amarrado e moedas de prata nas órbitas a fitar-me com reprovação, Este é o que foi para Loanda morar no meio dos pretos em lugar de explorar uma tabacaria na Venezuela ou um escritório de transportes na Alemanha, este é o que montou um comércio de talhante nos musseques, vendia costeletas aos cafres, fez um filho a uma mulata, habitava um prefabricado da Cuca, nem um coche, nem um batel possuía, aos domingos espojava-se na sala, de calções, a ouvir relatos de futebol e a comer merda de sanzala, o escrivão da puridade aplicou-se em apontamentos góticos adiante do meu nome, sacudindo as orelhas entendidas como se partilhasse o desprezo ou o desgosto dos meus tios, e o diácono que o acolitava, com uma coroa de cabelos e bochechas de Santo António de azulejo insistiu Nenhuns parentes, nenhum cunhado, nenhuma relação distante, à medida que preenchia formulários, multiplicava números numa calculadora de bolso, me estendia um papel para assinar, Aqui, entornava uma gota de lacre no termo da página e a oferecia ao outro para que apusesse o anel de armas na nódoa de sangue fumegante. A mulata, de sandálias de plástico e lenço amarrado na testa, que antes de morar comigo servia à mesa num restaurante da Ilha, abismava-se num cartaz de férias orientais que exibia um casal de grinaldas ao pescoço refastelando-se de caneca de cerveja num poente marinho. Ninguém, disse eu, só a mobília do quarto que há-de chegar no próximo galeão se a não desviaram no porto com esta história de roubalheira, democracia e socialismo, e orgulhei-me das mesinhas de cabeceira com maçanetas de loiça, da consola de três portas para garrafas, cristais e copos de água e de vinho, para além da cómoda da roupa de sumptuoso tampo de mármore no qual se gravavam as veias que se ramificam de leve nas pálpebras das crianças, ao mesmo tempo que o escrivão me entregava, com a pompa de um diploma de menção honrosa, uma notificação ilegível, Tem oito dias para comparecer nesta repartição, agora veja lá. Nas minhas costas um plebeu de muletas protestava contra as demoras da burocracia, Em saindo daqui apresento queixa aos jornais, e eu cessei de ouvi-lo porque me lembrei de novo de Coruche e da madrinha do meu pai a coxear para casa, com a cesta das molas da roupa na mão, desfocada na latada das videiras. Quanto ao comer e ao dormir, explicou o escrivão alheio ao das bengalas, sem olhar sequer ou se preocupar nunca com a mulata ou o miúdo que se me enrolava nas pernas, de boca aberta numa espiral de angústia, arranjámos-lhe lugar na Residencial Apóstolo das Índias, Largo de Santa Bárbara, meta-se num autocarro e pergunte pelo senhor Francisco Xavier, o que se segue. Um ruivo grosso e tímido, gaguejando empenhos, acotovelou-me para se aproximar da secretária e estávamos sozinhos e postos de banda numa cidade que conhecia sem conhecer e cheirava à carne doce dos javalis que os monteiros açulam no verão perseguindo-os pelas praças e travessas de Linda-a-Velha ou de Bucelas, enquanto homens de negócios holandeses e capitães dos mares de Malaca desapareciam nos táxis do aeroporto na direcção do centro da cidade e do fedor de vazante dos seus becos, e nós os três cá fora, no passeio, à torreira, à espera das mesinhas vindas de Angola como se as caravelas atravessassem as avenidas para nos depositarem aos pés um caixote bolorento de limos de baixios, amolecido pelas gengivas das ondas, destruído por correntes contraditórias e gumes de recife, barbudo de mexilhões e ostras oceânicas, com um resto de colchão e uma maçaneta dentro.


in "AS NAUS" de António Lobo Antunes