terça-feira, dezembro 21, 2010

AOS DOIS CADÁVERES

OS DOIS CADÀVERES


Coube a Jorge de Sena o editorial do jornal Portugal Democrático de abril de 1960, evocando o cadáver do Capitão Almeida Santos, um dos líderes da abortada “Conspiração da Sé” (da qual participara o próprio Sena), encontrado na praia do Guincho – caso que também forneceu mote a José Cardoso Pires para o seu Balada da Praia dos Cães.





Noticiaram os jornais a 2 de abril, em telegrama da AFP, que “as investigações para identificação de um cadáver descoberto anteontem na praia do Guincho, perto de Lisboa, permitem suspeitar de que se trata do capitão Almeida Santos, um dos evadidos da prisão militar de Elvas, em Dezembro último, onde estava encarcerado por actividades políticas contra o regime”. Tão sinistro, hipócrita e cobarde é o espírito da ditadura salazarista, que até o teor deste telegrama o retrata. É possível que o cadáver seja... Suspeita-se de que seja... Porquê? O cadáver está mutilado, irreconhecível, podre, como o próprio cadáver da Pátria que simboliza? Foi estrangulado, baleado, afogado, atropelado, atirado de uma janela alta, como todos os que “se” estrangularam, balearam, afogaram, atropelaram, atiraram - depois de caídos nas garras da PIDE? Fica-se na dúvida, a dúvida alimentada pela incerteza. Não há responsáveis de coisa alguma, ninguém é responsável de nada... Nada se passou - a não ser a satisfação dada ao registro civil de um óbito, um modesto óbito incerto que permite enterrar o sujeito em silêncio mais definitivo que uma desaparição inexplicável.

Isto é Salazar inteiro, isto é Portugal ensangüentado e trágico, que nem sequer nos cobre de vergonha com a sua atrocidade, porque permite (suspeitar...) todas as complacências, todas as cumplicidades, todas as mesuras da diplomacia covarde e interesseira. NEM SEQUER podemos ter vergonha disto, aos olhos do mundo, porque o mundo a não tem, antes de nós, de pactuar com os crimes de Salazar.

Que cadáver submisso! Que cadáver silencioso! Quantos meses levou a percorrer a escassa largura de Portugal, desde Elvas até àquele Atlântico que é o mesmo que banha as costas do Brasil! Numa praia deserta, aparece o cadáver hipotético de um homem que foi um dos chefes militares do 12 de março. Cadáver que poderia ser o de qualquer outro da enorme quantidade de civis e militares de todas as opiniões políticas que tentaram o “12 de Março” com uma extensão e uma profundidade que o Estado Novo teme esclarecer! Fazer aparecer o seu cadáver é mostrar a sorte que poderia ser a de cada um, mas é também roubar à vítima e aos outros o galardão do martírio, do sacrifício, do escândalo nacional e mundial, a que não resistiria um governo de assassinos mais vis que a vileza, porque nem mesmo tem a ombridade de estadear a sua profissão verdadeira.

Onde está o “glorioso Exército português”? Porque o capitão Almeida Santos era um dos seus membros mais brilhantes. Onde está a consciência dos pais de família. Porque o capitão Almeida Santos era um pai de família. Onde está o povo português? Porque o capitão Almeida Santos era um português. Onde está Portugal?

Tu, Salazar, nunca fizeste serviço militar. Nunca foste – que tenhas tido a dignidade de o confessar – pai de família. Nunca foste português, porque os portugueses sempre se vangloriaram de tudo, até dos crimes. Mas serás um cadáver, hás-de ser um cadáver, terás de ser um cadáver. Não um cadáver hipotético – como o da Pátria ensangüentada – abandonado, tão ocasionalmente, numa praia deserta. Mas um cadáver – consola-te – que não terá tempo de apodrecer, como o da Pátria em trinta anos de governo teu. Um cadáver que a terra portuguesa se recusará a comer. Um cadáver que os mares de Portugal – e todos são – se recusarão a engolir.

“PORTUGAL DEMOCRÁTICO” concita a consciência do mundo a que compare e escolha – entre o cadáver hipotético do Cap. Almeida Santos, um homem de bem que tentou honestamente salvar a sua Pátria, e o cadáver inadiável do tirano, um homem de mal que tenta cavilosamente destruí-la consigo. “PORTUGAL DEMOCRÁTICO” pergunta de uma vez para sempre ao glorioso Exército português: a qual dos cadáveres ele acha que deve honras militares.

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