SEGUNDO NASCIMENTO
Depois que se romperam os sapatos,
e deixei a gravata pior que uma rodilha no caixote do lixo,
é que vi bem o céu.
Um homem levantou a vista dos torrões e olhou para cima.
Mil cadeias inúteis se quebraram.
Mil caras, mil sorrisos, mil atitudes passaram.
Mil crenças se apagaram.
E dentro de mim mesmo surgi eu.
Enquanto se perdeu a última falripa da sola do sapato
e se esgarçou o fio de seda da gravata,
saltei a outro mundo.
Já não entendo as velhas relações nem amo as minhas velhas amizades.
Tudo o que é dantes me aparece inodoro, insípido, incolor, sem significação.
Já não tenho a noção de caminhar no meio de maltrapilhos.
Não há mais eu e eles porque passou a haver unicamente nós.
Os doutores, as madames e as meninas em série nunca mais me viram
porque passam por mim sem me reconhecerem
e eu não consigo distingui-los bem na galeria imensa do friso dos fantoches.
Tenho a alma repleta de alegria
e os braços cheios de força
e o coração a transbordar amor.
Bendita a miséria que rompeu os sapatos
e esgarçou a gravata que abandonei no lixo
e me fez ver o céu.
Livre.
Agora que deitei fora as lentes emprestadas,
e mandei ao diabo as crenças emprestadas,
e cuspi no altar das coisas consagradas,
agora, sim: sou eu.
Mário Dionísio de Anunciação em Novo Cancioneiro
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