Para onde vamos afinal?
Os Riscos de Falência do Estado Democrático em Angola!
Maurílio Luiele
Causou-nos viva perplexidade o recente episódio afectando o semanário ‹‹A Capital››. Meus Senhores, impedir uma publicação de sair à rua, queimando mais de 3000 exemplares apenas porque expressa uma opinião contrária ao discurso oficial é um atentado grave à liberdade de expressão e de opinião, direitos fundamentais garantidos pela Constituição da República de Angola. É censura grotesca e violenta, que nos remete para a era das trevas. É GOLPE! Não tem outra designação!
Pensar que, menos de um ano depois de inaugurada a chamada III República, assistiríamos impotentes a uma violação tão escancarada da Constituição com a manifesta complacência dos órgãos do Estado, é de deixar arrepiado qualquer angolano que, como eu, acredita que a democracia é possível em Angola e, aliás, pela sua diversidade sociocultural, não há mesmo a ela alternativa.
Não é necessária nenhuma super-formação jurídica para concluir que o episódio em epígrafe é uma violação grosseira aos direitos fundamentais garantidos pela Constituição. Não cabe sequer interpretação ou discussão. Porém, um olhar pregresso pelos acontecimentos em Angola, pelo menos desde Setembro de 2008 nos alerta para o facto deste episódio não se tratar de um caso isolado. Desde o próprio processo eleitoral 2008 ao escamotear posterior do calendário eleitoral, passando pelo atribulado processo constitucional, às proibições de manifestações e pelo cortejo quotidiano de violações de direitos fundamentais de que Tchavola, Iraque e Zango são exemplos eloquentes, fica exposta uma orquestração afinada e consciente que visa perverter o processo democrático angolano. Tais práticas passam longe do discurso oficial que advoga uma sociedade plural, e consequentemente democrática, reconciliada e economicamente desenvolvida. Como explicar então este ‹‹gap›› entre o discurso político oficial e a prática política. Quem são afinal estas pessoas que, tendo inusitado acesso aos jornais privados antes mesmo que sejam publicados, se arrogam ao direito de simplesmente queimá-los se contiverem matérias contrárias aos seus interesses? Quem são, entre nós, os pescadores de águas turvas e porque elegem este comportamento? É aqui que a meu ver cabe espaço para profunda reflexão, visando descortinar os rumos sinuosos porque passa a nossa incipiente democracia. Sem essa reflexão e posicionamento consciente corremos o risco de ver o país descambar para um brutal totalitarismo ante a nossa cúmplice passividade, e isso, não é, absolutamente, desejável. Por isso quero aqui avançar humildes subsídios que possam ampliar esta reflexão que se faz necessária.
Rafael Marques em seu makaangola.com, iniciativa anti-corrupção, tem trazido contribuições que nos ajudam a compreender a aracnídea teia de interesses envolvendo destacadas figuras do Estado angolano. Segundo ele, a ‹‹Presidência da República de Angola tem sido usada como um cartel de negócios obscuros›› e isso aporta consequências perniciosas ‹‹para a liberdade e o desenvolvimento dos cidadãos assim como para a estabilidade política e económica do país››. As várias denúncias levantadas por Marques não têm sido convincentemente desmentidas pelos implicados e isso explica em parte porque a célebre ‹‹tolerância zero›› só serviu para levantar poeira e turvar ainda mais as águas para os habituais pescadores se deleitarem e porque, em relação à lei da probidade administrativa, a ‹‹montanha pariu um verdadeiro rato›› que fecha as ditas declarações de bens num fortíssimo e inacessível cofre da PGR e isenta os mais altos dignitários do país desta declaração. A defesa destes interesses consolidados gera práticas políticas contrárias ao espírito democrático plasmado no discurso oficial e resulta nesta perniciosa fissura que separa contundentemente o discurso da prática. Entre estas práticas a mais costumeira e generalizada é a bajulação à figura de Eduardo dos Santos. Segundo Adam Smith, em ‹‹Teoria dos sentimentos morais›› nas cortes de príncipes onde sucesso e privilégios dependem não da estima de inteligentes e bem informados mas do favor de superiores presunçosos e arrogantes, a adulação e a falsidade prevalecem sobre o mérito e habilidades. Diz ainda Smith que em tais círculos ‹‹as habilidades em agradar são mais consideradas do que as habilidades em servir››. Os rasgos de bajulação que nos são dados a assistir diariamente em Angola nos fazem pensar que os círculos do poder aqui se guiam desta forma perversa e a blindagem que se procura em torno de Eduardo dos Santos resulta em práticas violentas como o episódio que aqui nos serve de referência e que afectou o semanário ‹‹A Capital››. Eduardo Gianetti, em seu livro ‹‹Auto-engano›› nos ajuda a compreender porque isto pode comprometer as nossas aspirações democráticas . Segundo ele, ‹‹o auto-engano pode ser uma estratégia útil para a sobrevivência. O enganador auto-enganado, convencido sinceramente do seu próprio engano, é uma máquina de enganar mais habilidosa e competente em sua arte do que o enganador frio e calculista.›› O enganador passa a acreditar em suas próprias mentiras e, assim fica mais fácil convencer os demais. Assim, aqueles que se cercam somente de bajuladores enquanto concentram poder e conquistam as massas, acabam blindados contra todo tipo de crítica. Os conselheiros mais sábios são ultrapassados pelos bajuladores e ficam diante deles impotentes passando a conduta do ‹‹príncipe›› a ser ditada pelos perversos conselhos dos bajuladores. Estes perseguem interesses díspares e, para alcançá-los não olham a meios, só os fins interessam.
Harry Adams em seu ensaio sobre plutocracia, diz-nos que plutocracia é um sistema em que seus actores se servem dos mecanismos e instituições democráticas para alimentar simplesmente interesses particulares em detrimento do interesse comum. A diferença com a cleptocracia é que esta simplesmente não se esconde sob o guarda-chuva da democracia. A cleptocracia simplesmente detona o sistema democrático porque não se resguarda nele. De toda a forma, as consequências sociais, políticas e económicas de ambos os sistemas são as mesmas: desigualdades sociais gritantes, crises económicas, atentados à liberdade de expressão, passam a ser imagens inamovíveis da paisagem social e política. No caso de Angola há fortes indícios que apontam para o estabelecimento de uma forma plutocrática de governo que explica, de resto, a dissonância entre o discurso político oficial de cunho essencialmente democrático e as práticas contrárias a ele que resultam da defesa de interesses particulares consolidados. O MPLA é hoje refém desta malha fina de interesses que foi tecida em torno de José Eduardo dos Santos e, não admira, portanto, que figuras como Marcolino Moco se confrontam com estrondosas dificuldades de se reverem e reconhecerem neste partido que tem responsabilidades históricas no processo angolano. Por seu lado, o Presidente da República que inquestionável e indiscutivelmente teve um papel decisivo no alcance da paz há oito anos e foi apontado por muitos como a figura da estabilidade, envolto nesta teia aracnídea, se transformou hoje no principal obstáculo ao desenvolvimento do processo democrático em Angola. Adams aponta como exemplo de plutocracia o governo de George W Bush, que, entre outros aspectos, se aproveitou da guerra no Iraque e da sua reconstrução para favorecer interesses de grupos económicos que lhe eram próximos, inclusive de grupos onde eram patentes interesses de Dick Cheney, então seu vice-presidente. As consequências das práticas plutocráticas de Bush são conhecidas: uma crise económica de dimensões planetárias e que todos, de alguma forma, experimentamos na pele. Contudo, o sistema democrático americano secular, dotado de mecanismos consolidados de exercício democrático, funcionou, ele próprio, como antídoto e tratou de extirpar radicalmente este cancro, gerando uma onda de mudança que numa única sentada varreu do seu caminho John MacCain e Hilary Clinton e conduziu Barack Obama, expressão cristalina da mudança, ao poder. No nosso caso, a plutocracia está actuando sobre uma democracia incipiente, minando à nascença os seus fundamentos, havendo, por consequência, riscos sérios dela se consolidar e converter o Estado democrático num estado autoritário, opaco e brutal que empurrará inexoravelmente mais angolanos para a miséria. Só a alternância protagonizada por forças verdadeiramente democráticas e engajadas poderá livrar Angola desta fatalidade.
Assim, é importante desde já uma tomada de consciência sobre os riscos reais de perversão do Estado democrático em Angola. Como cidadãos, dispomos ainda do poderoso instrumento que é o voto para impedirmos que isso aconteça. Mas, não admira que as forças retrógradas, que giram em torno dos interesses acima referidos, joguem a cartada de viciar a partida o processo eleitoral quer por vias jurídicas ou operacionais ou mesmo por via do torpedear do calendário eleitoral, como, aliás, já ocorreu em 2008 (afinal deveríamos votar para as presidenciais em 2009!). A própria constituição actual está cheia de “cascas de banana” estrategicamente colocadas para impedir a alternância. Mas, se for gerada uma verdadeira tsunami favorável à mudança, não haverá força capaz de impedir. As forças democráticas angolanas têm assim a responsabilidade de mobilizar amplamente os cidadãos para a mudança, gerando uma onda imparável de mudança que permitirá protagonizar a alternância em 2012. Se este movimento não se erguer, receio, sinceramente que a sobrevivência do Estado democrático em Angola ficará comprometida
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