domingo, dezembro 26, 2010

JORGE DE SENA /Some-te rato/ Depoimento corajoso em 1959 / S. Paulo

Some-te rato!



Em novembro de 1959 estreia-se Jorge de Sena como colaborador do jornal Portugal Democrático, editado em São Paulo desde 1956 por um ativo grupo de oposicionistas portugueses. O texto abaixo (prudentemente anônimo), além de mencionar as comemorações do “5 de outubro”, justifica e adensa de significado os desenhos satíricos de Fernando Lemos – ratos a figurarem o arqui-inimigo Salazar –, que vinham pontuando as páginas do jornal e deliciando os leitores

Tratam-te os que te lambem e legitimam, por Sr. Presidente do Conselho. Chamam-te os que ainda acreditam nas Universidades que degradaste, por Professor Doutor. No tempo em que eras fascista sem vergonha passavas por ser o Chefe, e os leonardos, teus chacais, escutavam a tua Palavra. Depois, quando inventaste a “democracia orgânica”, gostavas que te apelidassem de Chefe... do Governo. Mas, no isolamento e no silêncio e na treva, que é o sítio vago onde estaria a alma que te fugiu aterrada com o cheiro de arganaz podre a que o teu cérebro e o teu coração fedem, tu sabes que não és nada disso. Presidente de quê? De um Conselho de lacaios? Chefe de quê e de quem? Dos assassinos e ladrões impunes que proteges, para que eles te protejam o couro ressequido que nunca terá conhecido para que dignidade e que alegrias serve a carne humana? Professor de quê? Doutor em quê? Professor de desmoralização, de ceticismo, de corrupção, de crueldade, de hipocrisia, de blasfêmia, de infâmia? Doutor em quê? Em técnicas de Censura e de Polícia, que são toda a tua política, toda a tua filosofia, toda a tua religião?
Some-te, rato! Mergulha de uma vez no esgoto de oito séculos de erros que te criaram e engordaram, como excremento que és, venenoso, estéril, impotente. Rato, apenas, rato.
As comemorações brilhantíssimas do 5 de Outubro em São Paulo, o que elas significam de unidade na luta democrática, o que elas projetam no futuro como esperança de dissolução sulfúrica da tua presença pestilenta, nada disso chegará aos teus ouvidos surdos, às tuas unhas negras da pele dos mártires que esfolaste, à tua cauda imunda, com que fustigas um dos mais gloriosos e heróicos povos da terra. Não lerás, também porque és analfabeto e nunca leste nada, o telegrama em que os democratas reunidos para comemorar a Revolução que hoje simboliza a unidade de todos os portugueses, sem distinção de raça, religião ou credo político, na luta contra a tua baba peçonhenta, com que tens envenenado tanto patriota ingênuo que no Brasil honra o trabalho português, pedem a tua demissão.
E fazes bem, fazes bem. Tu não podes demitir-te, porque nunca foste nomeado. Tu és o símbolo da ilegalidade, da arbitrariedade, da injustiça, da opressão. Não te demitas, some-te! Some-te, rasteiro como nasceste, como subiste, como governaste, como imitaste nos teus discursos, laboriosamente vomitados, uma língua admirável que, rato que és, nunca soubeste falar. Some-te tal como viveste, com a mesma covardia com que mandaste assassinar, roubar, violentar. Some-te rato, com a tua bota de elástico, a tua pena de pato, a tua ceroula de fita, as tuas letras gordas, a tua finança de chácara, a tua economia de campônio, a tua política de traidores à Pátria. Some-te assim, rasteiro e mesquinho, como vieste! Some-te, rato! E que o ódio de um Povo, e o desprezo de todos os amantes da liberdade e da justiça, saibam esquecer o momento de nojo e de vergonha e castração que tu longamente foste, em mais de trinta anos de horror e reles mesquinhez. Que nem a tua pele piolhosa fique apodrecendo na memória das gentes, mais que como imagem da peste política e moral! Some-te rato!



terça-feira, dezembro 21, 2010

AOS DOIS CADÁVERES

OS DOIS CADÀVERES


Coube a Jorge de Sena o editorial do jornal Portugal Democrático de abril de 1960, evocando o cadáver do Capitão Almeida Santos, um dos líderes da abortada “Conspiração da Sé” (da qual participara o próprio Sena), encontrado na praia do Guincho – caso que também forneceu mote a José Cardoso Pires para o seu Balada da Praia dos Cães.





Noticiaram os jornais a 2 de abril, em telegrama da AFP, que “as investigações para identificação de um cadáver descoberto anteontem na praia do Guincho, perto de Lisboa, permitem suspeitar de que se trata do capitão Almeida Santos, um dos evadidos da prisão militar de Elvas, em Dezembro último, onde estava encarcerado por actividades políticas contra o regime”. Tão sinistro, hipócrita e cobarde é o espírito da ditadura salazarista, que até o teor deste telegrama o retrata. É possível que o cadáver seja... Suspeita-se de que seja... Porquê? O cadáver está mutilado, irreconhecível, podre, como o próprio cadáver da Pátria que simboliza? Foi estrangulado, baleado, afogado, atropelado, atirado de uma janela alta, como todos os que “se” estrangularam, balearam, afogaram, atropelaram, atiraram - depois de caídos nas garras da PIDE? Fica-se na dúvida, a dúvida alimentada pela incerteza. Não há responsáveis de coisa alguma, ninguém é responsável de nada... Nada se passou - a não ser a satisfação dada ao registro civil de um óbito, um modesto óbito incerto que permite enterrar o sujeito em silêncio mais definitivo que uma desaparição inexplicável.

Isto é Salazar inteiro, isto é Portugal ensangüentado e trágico, que nem sequer nos cobre de vergonha com a sua atrocidade, porque permite (suspeitar...) todas as complacências, todas as cumplicidades, todas as mesuras da diplomacia covarde e interesseira. NEM SEQUER podemos ter vergonha disto, aos olhos do mundo, porque o mundo a não tem, antes de nós, de pactuar com os crimes de Salazar.

Que cadáver submisso! Que cadáver silencioso! Quantos meses levou a percorrer a escassa largura de Portugal, desde Elvas até àquele Atlântico que é o mesmo que banha as costas do Brasil! Numa praia deserta, aparece o cadáver hipotético de um homem que foi um dos chefes militares do 12 de março. Cadáver que poderia ser o de qualquer outro da enorme quantidade de civis e militares de todas as opiniões políticas que tentaram o “12 de Março” com uma extensão e uma profundidade que o Estado Novo teme esclarecer! Fazer aparecer o seu cadáver é mostrar a sorte que poderia ser a de cada um, mas é também roubar à vítima e aos outros o galardão do martírio, do sacrifício, do escândalo nacional e mundial, a que não resistiria um governo de assassinos mais vis que a vileza, porque nem mesmo tem a ombridade de estadear a sua profissão verdadeira.

Onde está o “glorioso Exército português”? Porque o capitão Almeida Santos era um dos seus membros mais brilhantes. Onde está a consciência dos pais de família. Porque o capitão Almeida Santos era um pai de família. Onde está o povo português? Porque o capitão Almeida Santos era um português. Onde está Portugal?

Tu, Salazar, nunca fizeste serviço militar. Nunca foste – que tenhas tido a dignidade de o confessar – pai de família. Nunca foste português, porque os portugueses sempre se vangloriaram de tudo, até dos crimes. Mas serás um cadáver, hás-de ser um cadáver, terás de ser um cadáver. Não um cadáver hipotético – como o da Pátria ensangüentada – abandonado, tão ocasionalmente, numa praia deserta. Mas um cadáver – consola-te – que não terá tempo de apodrecer, como o da Pátria em trinta anos de governo teu. Um cadáver que a terra portuguesa se recusará a comer. Um cadáver que os mares de Portugal – e todos são – se recusarão a engolir.

“PORTUGAL DEMOCRÁTICO” concita a consciência do mundo a que compare e escolha – entre o cadáver hipotético do Cap. Almeida Santos, um homem de bem que tentou honestamente salvar a sua Pátria, e o cadáver inadiável do tirano, um homem de mal que tenta cavilosamente destruí-la consigo. “PORTUGAL DEMOCRÁTICO” pergunta de uma vez para sempre ao glorioso Exército português: a qual dos cadáveres ele acha que deve honras militares.

sexta-feira, dezembro 10, 2010

Quem era Helena Maria 1937-2010

Quem era


HELENA MARIA 

(1937-2010)



Espontânea, senhora de enorme força vital sempre de alegre e sincera convivialidade, derretendo-se de ternura pelos seus familiares e amigos e por todas as crianças do mundo sensível ao sofrimento dos mais desprotegidos da Terra, solidária com as vítimas das múltiplas repressões que sofrem os humanos, enfrentando com destemor as adversidades, abraçou a causa nacionalista angolana em 1959quando se casou. Com 21 anos de idade, casada há cerca de três meses, vê o seu marido ser preso em Luanda pela polícia política portuguesa, a PIDE. Sem experiência política ela enfrenta com dignidade os esbirros e as chantagens.



Desde 1963 no exílio, participa na luta pela independência de Angola através de intensa actividade no Centro de Estudos Angolanos, em Argel, a partir de 1964, (documentação, feitura de manuais de formação política e escolares) e depois no Congo – Brazzaville, onde é também locutora na rádio do MPLA, a Voz de Angola Combatente, e dá aulas dos programas do ensino primário e secundário aos militantes. Em 1974, adere à tendência chamada Revolta Activa , que contestava os métodos autocráticos da presidência do MPLA.



No pós-independência de Angola, em Abril de 1976, o regime instalado no poder manda encarcerar vários elementos da Revolta Activa, conseguindo o seu marido esconder-se. A Lena aguenta estoicamente a ausência dos filhos, Mário Jorge e Tonica - que tinham ido visitar os avós a Portugal e receberam instruções para não voltar, dado o ambiente repressivo – e debate-se com a incerteza do paradeiro do marido. Nesses cerca de três anos de ausência do companheiro e filhos, enfrentou dignamente as mais variadas provocações. Em Janeiro de 1979, acompanha o marido, Adolfo Maria, que fora expulso do seu país e metido num avião para Portugal, para um novo exílio. Aí reconstroem o seu núcleo familiar e recomeçam a vida. Com a sua inteligência, energia e comunicabilidade, a Helena Maria impôs-se profissional e socialmente, tal como sempre o fizera. Há cerca de quatro anos que lutava estoicamente contra um cancro do pulmão, enfrentando sempre confiante cada batalha a travar nessa inexorável marcha de adiar a morte.



Esta mulher transmontana, natural de Chaves, singela, frontal e acolhedora - à maneira de ser da sua região de origem – tinha também o convívio fácil, exuberante e abrangente que caracteriza os angolanos com quem tanto fraternizou e lutou pela liberdade. Mas, há sobretudo a registar o seu carácter, muito próprio, que se manifestou nas mais diversas circunstâncias e lugares. Da Lena fica para todos nós a sua enorme força interior que generosamente transmitia, uma viva inteligência, uma constante curiosidade pelo saber, a sua grande sensibilidade, a sua jovialidade, a profusa ternura com que envolvia os seus familiares, amigos e companheiros de luta, a sua solicitude e disponibilidade para partilhar, para socorrer, para acarinhar, a sua coragem em enfrentar adversidades e sobreviver a provações, a sua dignidade, que sempre preservou.



Ficámos sem o seu magnífico sorriso que iluminava os rostos dos que a rodeavam, esse sorriso que tanto aquecia os nossos corações.



Adolfo Maria

Lisboa, 6 de Dezembro de 2010

quarta-feira, outubro 27, 2010

La utilidad de los Nobel /Miren Etxezarreta

Con honrosas excepciones, los premios Nobel de Economía se conceden a expertos que llegan casi siempre a conclusiones convenientes para los intereses dominantes en la sociedad. Como ejemplo, Diamond, Mortensen y Pissarides, los tres galardonados este año: estudian el mercado de trabajo y las pensiones, temas de máxima actualidad, y se subraya la validez práctica de sus investigaciones. Los tres, además de sus posiciones en la Academia, son destacados asesores de política económica y sus trabajos son utilizados por muchos economistas que, a su vez, asesoran a altas instituciones de sus respectivos países. Los Nobel de 2010 eran ya conocidos en España y parece que han participado en las mesas de dialogo sobre la reforma laboral. Además, sus modelos sirven de base a bastantes estudios realizados por economistas españoles, en particular entre los cien economistas de FEDEA (Fundación de Estudios de Economía Aplicada) que, tan generosamente, ofrecen sus opiniones sobre temas candentes. Su influencia en este país es significativa.

Los premiados han elaborado modelos matemáticos en los que tratan de incorporar elementos no reconocidos en los enfoques convencionales, intentando aproximar los supuestos más elementales de la economía ortodoxa a la vida real, y por ello son galardonados. Algunas de las conclusiones a las que llegan son que el mercado de trabajo no funciona como los demás mercados, sino que experimenta numerosas fricciones que hacen que los mercados no regulados sean ineficientes. Destacan que un subsidio de paro generoso provoca una mayor tasa de paro porque alarga el periodo de inactividad al disminuir la intensidad de la búsqueda de trabajo de los desempleados y sugieren que a partir de los seis meses se reduzca la prestación por desempleo a favor de la formación, o que el subsidio de desempleo se vaya reduciendo en el tiempo (lo que ya está establecido en España) para obligar al parado a buscar empleo.

Aunque uno de ellos reconoce que la alta temporalidad hace que el desempleo crezca más rápido (Pissarides), sigue opinando que crear contratos temporales aumentaría el empleo. El experto en pensiones (Diamond) señala que habría que prolongar todo lo posible el periodo sobre el que se calcula la prestación de jubilación, que la edad de retiro debiera ser flexible, que se incentive que la jubilación sea más tardía. Y así sucesivamente.

Por supuesto hay algunos elementos progresistas en sus recomendaciones –la necesidad de instituciones laborales que corrijan estos fallos del mercado y lo regulen, o que hay que mejorar las pensiones de las viudas–, pero en estos consejos se puede reconocer la base de la reforma laboral y las propuestas para la de pensiones que se están planteando en casi en todos los países de la UE y en particular en España. Claro que se puede argumentar que ello muestra la solvencia de unas medidas tomadas sobre la base de rigurosos análisis económicos que las justifican, pero ¿existen garantías de que son las correctas?

Sus análisis tratan el mercado de trabajo como si fueran las ineficiencias internas de dicho mercado las que explican su mal funcionamiento, siempre de forma parcial y aislada, como si todas las demás variables fueran constantes, supuesto tan querido por los economistas. Nunca querría negar la importancia de las instituciones, pero existen otros muchos más aspectos de los que incluyen en sus trabajos. Olvidan muchas variables significativas que inciden en dicho mercado: la historia del desarrollo del país, su estructura productiva, la composición de la fuerza de trabajo, la tecnología, el tejido empresarial, la calidad de sus empresarios, etc. Y sus recomendaciones ignoran aspectos fundamentales de la estructura social –¿quién despide a los trabajadores y por qué lo hace?– y toman como premisas aspectos muy dudosos al suponer que los trabajadores son vagos y el subsidio de desempleo les lleva a alargar el periodo de paro, añadiendo el insulto a la injuria. ¿Tienen idea de cómo se vive con los ingresos del subsidio de paro? ¿Saben realmente que los parados con subsidio de desempleo son vagos? ¿Recomiendan que se lancen al primer trabajo que les ofrezcan aunque no se parezca en nada a sus cualificaciones? Por otra parte, si las instituciones (públicas) de intermediación funcionan mal, ¿las ETT privadas resolverán el problema? Y también, ¿resuelve la formación el problema del paro? ¿Cuántos parados con alta formación hay en España?

Habría que añadir muchas más preguntas. El mercado de trabajo trata de personas, de relaciones sociales entre poderes muy asimétricos, y está estrechamente vinculado a otros aspectos de la economía y la sociedad. Estos autores utilizan técnicas y modelos muy elaborados que les hacen parecer muy rigurosos, pero se diría que no han descubierto gran cosa que un observador inteligente del mercado de trabajo no supiera ya. Nos recuerda el pensamiento de Paul Baran (economista crítico estadounidense), que señalaba que los economistas sacrificamos a menudo la relevancia de los problemas a la belleza de los instrumentos formales.

Los premios Nobel tienen una abundante tradición de galardonados erróneos. Quizá el más escandaloso fue el concedido en 1997 por desarrollar un nuevo método para determinar el valor de los derivados a Merton y Scholes, que fueron antes de un año los artífices de una de las mayores quiebras financieras de Estados Unidos, pero no es el único. Llevan años concediendo el premio a economistas destacados por sus aportaciones basadas en la economía convencional y recomendando políticas económicas neoliberales, siempre orientadas a reforzar los intereses de los poderosos. Los Nobel sirven de potentes instrumentos para legitimar las decisiones del poder económico y político.

Miren Etxezarreta es catedrática emérita de Economía Aplicada de la UAB

quarta-feira, setembro 29, 2010

Partrimónio de Luanda

AMIGOS, APOIANTES E SIMPATIZANTES:



A CAMPANHA REVIVER tem como objectivo a DEFESA, PROTECÇÃO, REABILITAÇÃO e REQUALIFICAÇÃO do património da cidade de Luanda.

JUNTE-SE A NÓS NO LARGO DO "BALEIZÃO"

"10 de Outubro"

quinta-feira, setembro 23, 2010

Para onde vamos afinal?/Maurílio Luiele

Para onde vamos afinal?


Os Riscos de Falência do Estado Democrático em Angola!



Maurílio Luiele



Causou-nos viva perplexidade o recente episódio afectando o semanário ‹‹A Capital››. Meus Senhores, impedir uma publicação de sair à rua, queimando mais de 3000 exemplares apenas porque expressa uma opinião contrária ao discurso oficial é um atentado grave à liberdade de expressão e de opinião, direitos fundamentais garantidos pela Constituição da República de Angola. É censura grotesca e violenta, que nos remete para a era das trevas. É GOLPE! Não tem outra designação!

Pensar que, menos de um ano depois de inaugurada a chamada III República, assistiríamos impotentes a uma violação tão escancarada da Constituição com a manifesta complacência dos órgãos do Estado, é de deixar arrepiado qualquer angolano que, como eu, acredita que a democracia é possível em Angola e, aliás, pela sua diversidade sociocultural, não há mesmo a ela alternativa.

Não é necessária nenhuma super-formação jurídica para concluir que o episódio em epígrafe é uma violação grosseira aos direitos fundamentais garantidos pela Constituição. Não cabe sequer interpretação ou discussão. Porém, um olhar pregresso pelos acontecimentos em Angola, pelo menos desde Setembro de 2008 nos alerta para o facto deste episódio não se tratar de um caso isolado. Desde o próprio processo eleitoral 2008 ao escamotear posterior do calendário eleitoral, passando pelo atribulado processo constitucional, às proibições de manifestações e pelo cortejo quotidiano de violações de direitos fundamentais de que Tchavola, Iraque e Zango são exemplos eloquentes, fica exposta uma orquestração afinada e consciente que visa perverter o processo democrático angolano. Tais práticas passam longe do discurso oficial que advoga uma sociedade plural, e consequentemente democrática, reconciliada e economicamente desenvolvida. Como explicar então este ‹‹gap›› entre o discurso político oficial e a prática política. Quem são afinal estas pessoas que, tendo inusitado acesso aos jornais privados antes mesmo que sejam publicados, se arrogam ao direito de simplesmente queimá-los se contiverem matérias contrárias aos seus interesses? Quem são, entre nós, os pescadores de águas turvas e porque elegem este comportamento? É aqui que a meu ver cabe espaço para profunda reflexão, visando descortinar os rumos sinuosos porque passa a nossa incipiente democracia. Sem essa reflexão e posicionamento consciente corremos o risco de ver o país descambar para um brutal totalitarismo ante a nossa cúmplice passividade, e isso, não é, absolutamente, desejável. Por isso quero aqui avançar humildes subsídios que possam ampliar esta reflexão que se faz necessária.

Rafael Marques em seu makaangola.com, iniciativa anti-corrupção, tem trazido contribuições que nos ajudam a compreender a aracnídea teia de interesses envolvendo destacadas figuras do Estado angolano. Segundo ele, a ‹‹Presidência da República de Angola tem sido usada como um cartel de negócios obscuros›› e isso aporta consequências perniciosas ‹‹para a liberdade e o desenvolvimento dos cidadãos assim como para a estabilidade política e económica do país››. As várias denúncias levantadas por Marques não têm sido convincentemente desmentidas pelos implicados e isso explica em parte porque a célebre ‹‹tolerância zero›› só serviu para levantar poeira e turvar ainda mais as águas para os habituais pescadores se deleitarem e porque, em relação à lei da probidade administrativa, a ‹‹montanha pariu um verdadeiro rato›› que fecha as ditas declarações de bens num fortíssimo e inacessível cofre da PGR e isenta os mais altos dignitários do país desta declaração. A defesa destes interesses consolidados gera práticas políticas contrárias ao espírito democrático plasmado no discurso oficial e resulta nesta perniciosa fissura que separa contundentemente o discurso da prática. Entre estas práticas a mais costumeira e generalizada é a bajulação à figura de Eduardo dos Santos. Segundo Adam Smith, em ‹‹Teoria dos sentimentos morais›› nas cortes de príncipes onde sucesso e privilégios dependem não da estima de inteligentes e bem informados mas do favor de superiores presunçosos e arrogantes, a adulação e a falsidade prevalecem sobre o mérito e habilidades. Diz ainda Smith que em tais círculos ‹‹as habilidades em agradar são mais consideradas do que as habilidades em servir››. Os rasgos de bajulação que nos são dados a assistir diariamente em Angola nos fazem pensar que os círculos do poder aqui se guiam desta forma perversa e a blindagem que se procura em torno de Eduardo dos Santos resulta em práticas violentas como o episódio que aqui nos serve de referência e que afectou o semanário ‹‹A Capital››. Eduardo Gianetti, em seu livro ‹‹Auto-engano›› nos ajuda a compreender porque isto pode comprometer as nossas aspirações democráticas . Segundo ele, ‹‹o auto-engano pode ser uma estratégia útil para a sobrevivência. O enganador auto-enganado, convencido sinceramente do seu próprio engano, é uma máquina de enganar mais habilidosa e competente em sua arte do que o enganador frio e calculista.›› O enganador passa a acreditar em suas próprias mentiras e, assim fica mais fácil convencer os demais. Assim, aqueles que se cercam somente de bajuladores enquanto concentram poder e conquistam as massas, acabam blindados contra todo tipo de crítica. Os conselheiros mais sábios são ultrapassados pelos bajuladores e ficam diante deles impotentes passando a conduta do ‹‹príncipe›› a ser ditada pelos perversos conselhos dos bajuladores. Estes perseguem interesses díspares e, para alcançá-los não olham a meios, só os fins interessam.

Harry Adams em seu ensaio sobre plutocracia, diz-nos que plutocracia é um sistema em que seus actores se servem dos mecanismos e instituições democráticas para alimentar simplesmente interesses particulares em detrimento do interesse comum. A diferença com a cleptocracia é que esta simplesmente não se esconde sob o guarda-chuva da democracia. A cleptocracia simplesmente detona o sistema democrático porque não se resguarda nele. De toda a forma, as consequências sociais, políticas e económicas de ambos os sistemas são as mesmas: desigualdades sociais gritantes, crises económicas, atentados à liberdade de expressão, passam a ser imagens inamovíveis da paisagem social e política. No caso de Angola há fortes indícios que apontam para o estabelecimento de uma forma plutocrática de governo que explica, de resto, a dissonância entre o discurso político oficial de cunho essencialmente democrático e as práticas contrárias a ele que resultam da defesa de interesses particulares consolidados. O MPLA é hoje refém desta malha fina de interesses que foi tecida em torno de José Eduardo dos Santos e, não admira, portanto, que figuras como Marcolino Moco se confrontam com estrondosas dificuldades de se reverem e reconhecerem neste partido que tem responsabilidades históricas no processo angolano. Por seu lado, o Presidente da República que inquestionável e indiscutivelmente teve um papel decisivo no alcance da paz há oito anos e foi apontado por muitos como a figura da estabilidade, envolto nesta teia aracnídea, se transformou hoje no principal obstáculo ao desenvolvimento do processo democrático em Angola. Adams aponta como exemplo de plutocracia o governo de George W Bush, que, entre outros aspectos, se aproveitou da guerra no Iraque e da sua reconstrução para favorecer interesses de grupos económicos que lhe eram próximos, inclusive de grupos onde eram patentes interesses de Dick Cheney, então seu vice-presidente. As consequências das práticas plutocráticas de Bush são conhecidas: uma crise económica de dimensões planetárias e que todos, de alguma forma, experimentamos na pele. Contudo, o sistema democrático americano secular, dotado de mecanismos consolidados de exercício democrático, funcionou, ele próprio, como antídoto e tratou de extirpar radicalmente este cancro, gerando uma onda de mudança que numa única sentada varreu do seu caminho John MacCain e Hilary Clinton e conduziu Barack Obama, expressão cristalina da mudança, ao poder. No nosso caso, a plutocracia está actuando sobre uma democracia incipiente, minando à nascença os seus fundamentos, havendo, por consequência, riscos sérios dela se consolidar e converter o Estado democrático num estado autoritário, opaco e brutal que empurrará inexoravelmente mais angolanos para a miséria. Só a alternância protagonizada por forças verdadeiramente democráticas e engajadas poderá livrar Angola desta fatalidade.

Assim, é importante desde já uma tomada de consciência sobre os riscos reais de perversão do Estado democrático em Angola. Como cidadãos, dispomos ainda do poderoso instrumento que é o voto para impedirmos que isso aconteça. Mas, não admira que as forças retrógradas, que giram em torno dos interesses acima referidos, joguem a cartada de viciar a partida o processo eleitoral quer por vias jurídicas ou operacionais ou mesmo por via do torpedear do calendário eleitoral, como, aliás, já ocorreu em 2008 (afinal deveríamos votar para as presidenciais em 2009!). A própria constituição actual está cheia de “cascas de banana” estrategicamente colocadas para impedir a alternância. Mas, se for gerada uma verdadeira tsunami favorável à mudança, não haverá força capaz de impedir. As forças democráticas angolanas têm assim a responsabilidade de mobilizar amplamente os cidadãos para a mudança, gerando uma onda imparável de mudança que permitirá protagonizar a alternância em 2012. Se este movimento não se erguer, receio, sinceramente que a sobrevivência do Estado democrático em Angola ficará comprometida

Negócios impróprios para Beócios!

Isabel dos Santos: Filha do Zé Dú à conquista de Moçambique



Chamam-lhe princesa, mas é cada vez mais Rainha Isabel do "doing business" à moda angolana. Angola já é sua, com negócios em áreas estratégicas para esticar a sua mola sem rebentar a corda. Dizem que, pelas suas alianças tácticas empresariais, já é a mulher mais poderosa de Portugal. Agora, ela vem aí: aos 37 anos, Isabel dos Santos, filha do Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, está à conquista de Moçambique. À velocidade de um ZAP!



Esta mulher não pára! É assim como muitos preferem qualificar a sanha conquistadora da filha mais velha de Zé Dú, como carinhosamente é tratado o Presidente de Angola José Eduardo dos Santos.



Isabel dos Santos, a empresária mais influente de Angola no Mundo inteiro (incluam-se empresários que vestem calças por força da genética), está a chegar a Moçambique, dentro em breve. Princesa em Angola, poderosa em Portugal, ela vai expandir agora os seus tentaculares negócios à Varanda do Índico, cuja porta de entrada é o lucrativo negócio da televisão por subscrição, no caso a televisão por satélite.



Através da ZAP, negócio em que ela participa com 70 porcento associada à portuguesa Zon (com os restantes 30%), Isabel dos Santos entra no mercado da TV em sinal fechado concorrendo com a TV Cabo portuguesa e a DSTV Moçambique – subsidiária da multinacional de origem sul-africana DSTV Multichoice.



Os media (TV e agências de comunicação) e as telecomunicações (móveis, Internet, transmissão de dados em banda) são um negócio bastante apetecível em Moçambique, não obstante no capítulo da TV por satélite tenha entrado no país, há dois anos, e em pouco tempo decretado falência a GTV África, subsidiária da britânica Gateway Communications.



A ZAP vai oferecer jogos da Liga Portuguesa de futebol, um exclusivo garantido para Angola e Moçambique através do canal Sport TV África, bem como os canais portugueses SIC Notícias, SIC Mulher, TVI 24, TVI Internacional e o Económico TV.



Segundo informações veiculadas esta semana, com ênfase para a imprensa económica lusa, José Pedro Pereira da Costa, administrador financeiro da Zon, está esta semana no País para tratar dos últimos detalhes antes do início da comercialização do serviço de satélite. Pereira da Costa adiantou que a ZAP já começou a contratar pessoas no país e que a operação, a acontecer no final do primeiro trimestre deste ano, será similar à lançada em Angola. “Vamos ter os mesmos canais e usar o mesmo satélite”, explicou, citado pelo Correio da Manhã de Portugal.



Potencial vencedora da terceira licença de telefonia móvel em Moçambique



Os tentáculos de Isabel dos Santos não se ficarão pelo universo da televisão, pelo campo dos media e das telecomunicações.



A filha mais velha de Zé Dú é potencial vencedora do concurso para a adjudicação da terceira licença de telefonia móvel em Moçambique, uma vez os seus interesses empresariais estarem fortemente estabelecidos em dois dos três consórcios concorrentes.



Concorrendo contra o consórcio Movitel - produto da aliança entre a holding do partido Frelimo (SPI – Gestão e Investimentos) e os vietnamitas da original Movitel -, Isabel dos Santos tem a vitória quase garantida via suas ligações à TMN portuguesa ou pela participação no consórcio UNI-Telecomunicações, em que via UNITEL SA partilha interesses empresariais (50%) com o “tigre” Celso Correia.



A vantagem de Isabel dos Santos não é só por ter a mão em dois dos três concorrentes mas, e sobretudo, devido a dois factores X, de acordo com analistas insiders do meio empresarial moçambicano e familiares ao negócio.



O primeiro factor X é que tecnicamente a TMN oferece garantias de melhor qualidade técnica, gozando do expertise internacional da portuguesa PT - que acaba de vender a sua participação na brasileira Vivo para a rival espanhola Telefónica.



A TMN é um consórcio entre a PT e o Grupo Visabeira Moçambique, sendo que a PT é parceira com a mesma margem (25%) que Isabel dos Santos na UNITEL SA, de Angola - os restantes 50% da estrutura accionista são divididos pela holding e petrolífera angolana Sonangol e pela Vidatel.



Nas suas várias ramificações empresariais, Isabel dos Santos é dona da GENI angolana, que por sua vez entra na estrutura do Banco Espírito Santo Angola (BESA).



O BESA é detido maioritariamente pelo BES de Portugal, esse mesmo banco sobre o qual na semana antepassada noticiámos que vai entrar na estrutura accionista do Moza Banco.



A ligação directa de Isabel dos Santos à PT é, por isso, concretizada pela participação do BES na PT. Seja como for, Isabel dos Santos e a PT detêm juntos 50% da UNITEL SA, que se juntou à moçambicana Energia Capital SA no consórcio UNI-Telecomunicações.



Naquilo que o jornalista do SAVANA Francisco Carmona designou como um novo mapa cor-de-rosa, a Energia Capital SA representa os interesses do Grupo INSITEC, do tigre Celso Correia, que tal como Isabel dos Santos tem fibra bancária (segundo Factor X) para avançar com a melhor proposta financeira na corrida ao indicativo 86 que será conferido à terceira operadora de telefonia móvel do país.



Unir TV, telefonia móvel e Internet e investir na energia



Caso consiga aliar a telefonia móvel à televisão, analistas do doing business nacional vaticinam que Isabel dos Santos deverá atacar o negócio da Internet em Moçambique, agregando essas três ramificações das telecomunicações e explorando o vindouro negócio da televisão móvel.



Segundo @Verdade apurou no meio empresarial, os interesses da primogénita do Zé Dú não deverão ficar-se por aí, porquanto ela pretenderá investir no próspero sector da energia. A sua entrada poderá processar-se via aliança com a Energia Capital de Celso Correia, não se descartando a hipótese de uma ligação com um dos homens da energia com mais tarimba, Salimo Abdula.



@Verdade sabe que Isabel dos Santos teve um encontro privado com Salimo Abdula, à margem da visita da comitiva empresarial moçambicana a Angola, no voo inaugural da LAM no ano passado, assinalando o regresso da rota Maputo/Luanda/Maputo.



Não se sabe se esse encontro foi com o Salimo Abdula presidente da Confederação das Associações Económicas (CTA) ou com o Salimo Abdula investidor decano no sector da energia e derivados.



Mas, certamente, terá manifestado a sua vontade de investir em Moçambique.



Rainha Isabel, tão famosa como Njinga Mbandi



Na historiografia angolana há uma mulher de consenso, quanto ao poder que detinha: é a Rainha Njinga Mbandi. Considerada o maior símbolo da resistência angolana à colonização, não só lutou contra a ameaça do colonizador como também aliou os povos do Ndongo, Matamba, Kongo, Kasanje, Dembos, Kissama e do Planalto Central, naquela que a história reza como a maior aliança que se constituiu para lutar contra os portugueses.



Não será blasfémia nem heresia considerar que Isabel dos Santos corre sérios riscos de se tornar tanto ou mais famosa que a mítica Njinga Mbandi, mundialmente. Pelo menos nos motores de busca Google e Bing, Isabel dos Santos já é infinitesimamente citada por força das suas participações em negócios tão lucrativos quão estratégicos quais:



Casinos em Angola, em aliança com o magnata macaense Stanley Ho, o tal que cedeu quase metade da sua participação no moçambicano MozaBanco ao BES, sabendo-se que esta aliança dos Santos/Ho pretende expandir para Moçambique também o negócio da roda da sorte e azar e das chamadas máquinas caça-níqueis ou slot machines;



Bancos, em Angola e Portugal, com importantes investimentos no banco português BPI (9,69%), no Banco Espírito Santo Angola - BESA (20%), no BIC (25%), e no Banco Fomento Angola (49,9% através da UNITEL);



Telecomunicações em Angola e Portugal, detendo 25 porcento da UNITEL, através da GENI, e participando ínfima mas lucrativamente na PT portuguesa.



“A mulher mais poderosa de Portugal é angolana”



Num traço do seu perfil empresarial escasso em adjectivos mas prenhe de substantivos, o Jornal de Negócios de Portugal dedicou-lhe uma matéria em que a associa à maioria dos dez mais ricos de Portugal e a compara às suas mulheres mais ricas, para concluir que “a mulher mais poderosa de Portugal é angolana”.



Será que o mesmo não será aplicado a Moçambique, dentro de alguns anos?

Termo de comparação: a mulher mais rica de Portugal, segundo a revista Exame, é Maria do Carmo Moniz Galvão Espírito Santo Silva, com uma fortuna de 731 milhões de euros; com apenas uma fracção do seu dinheiro (na Galp, BPI, Zon, BESA), Isabel já tinha em Janeiro passado quase dois mil milhões de euros.



O autor da peça, Pedro Santos Guerreiro, chega ao extremo de referir que aliando todas as suas conexões empresariais à sociedades portuguesas, Isabel dos Santos “dá um índice bolsista”.





Isabel dos Santos joga os seus interesses em rivais nos vários sectores estratégicos da economia portuguesa. Astuta, Isabel dos Santos dá-se ao luxo de protagonizar proezas como esta: os últimos dois grandes negócios dela em Portugal, no BPI em 2008 e na Zon em 2009, tiveram uma curiosidade cabalística - ambos foram fechados na terceira semana de Dezembro; ambos de 10%; ambos por 164 milhões.



Filha mais velha de José Eduardo dos Santos e da azeri Tatiana Kukanova, Isabel nasceu em 1973 em Baku (Azerbaijão), quando o pai foi estudar Engenharia de Petróleos no Instituto de Petróleo e Gás de Baku, ex-União Soviética.



Isabel viveu grande parte da vida em Londres, onde estudou Gestão e Engenharia e conheceu o também empresário congolês Sindika Dokolo, com quem se casou em 2003.



Empossado Presidente de Angola aos 37 anos, a 21 de Setembro de 1979, após a morte de Agostinho Neto 11 dias antes, vítima de cancro, Zé Dú vê a sua filha tornar-se poderosa aos 37 anos, ao ponto de o jornalista luso Santos Guerreiro sentenciar:

“Dizem que detesta ser tratada como a filha de José Eduardo dos Santos. Pela maneira como se está a afirmar em Portugal, um dia trataremos o Presidente de Angola como o pai de Isabel dos Santos.”

http://www.verdade.co.mz/destaques/economia/isabel-dos-santos-filha-do-ze-du-a-conquista-de-mocambique.html

Casa Pia/ Opinião de Mário Brochado Coelho

Uma opinião





1. É necessário que se saiba que a situação actual da Justiça afecta os cidadãos que a ela recorrem e todos os agentes de sua administração (magistrados, procuradores, advogados, funcionários e polícias com poder de investigação ou apoio), criando uma descrença generalizada que corrói não apenas a chamada “confiança no sistema judiciário português” mas o próprio dia a dia de cada pessoa e de cada profissional. Ninguém, pois, pode ser indiferente ao que se passa. Só por isso, entendi que não devia deixar de fazer ouvir a voz de um advogado com mais de 40 anos de profissão em prática individual e que se situa fora do mundo caótico do espaço dito mediático, das lutas corporativas do sector da justiça, e do quadro político-partidário anexo.



2. Tomemos por motivo apenas os últimos acontecimentos do chamado “caso Casa Pia” e comecemos por recordar em linguagem simples alguns princípios básicos:

a) a administração da justiça constitui um polo central do edifício de um estado democrático devendo ser tratado em regime de alta prioridade a todos os níveis (recursos humanos e financeiros, em particular) e não apenas como algo de meramente lateral e acessório;

b) a verdadeira legitimidade de todos quantos actuam na administração da justiça - e em particular de quem julga - nasce e decorre, em meu entender, apenas da bondade dos resultados por si produzidos;

c) a justiça praticada numa dada sociedade tem a ver com os quadros ético e legal imperantes nessa mesma sociedade e as decisões proferidas deverão, em regra geral, “condizer” com as melhores aspirações de todos os cidadãos organizados de forma democrática, pelo que não é aceitável uma justiça obscura ou clandestina ou subjectiva que não seja explicada e suficientemente entendida pelo povo (que, aliás, é constitucionalmente em nome de quem é feita a justiça);

d) ou seja, só é verdadeira justiça aquela que respeita estes princípios e os executa com uma celeridade adequada a cada caso concreto e aos seus efeitos declaratórios, preventivos e/ou punitivos.



3. Não tenho conhecimento dos termos do processo do “caso Casa Pia” e por isso recuso-me a exercer esse velho jeito português de dar palpites sobre o que não se sabe, duvidar de tudo e de todos para aumentar a suspeição geral, e de usar o “sábio” critério lusitano do “cheira-me que...”. Mas sou vítima e beneficiário das consequências negativas e positivas de um mau processo, uma má sentença, uma má justiça. Só com esta base, portanto, me arrisco a concluir o que, porventura, muitos já concluíram: o processo Casa Pia começou mal, desenvolveu-se mal e produziu uma decisão (ainda não final) que não apazigua os receios dos cidadãos, os direitos tanto das eventuais vítimas como dos arguidos, e o “bom nome” das magistraturas, dos advogados e de todos os demais agentes judiciários. Mas que quero dizer com a palavra “apaziguar” ? Uma decisão judicial, para além de dever ser juridicamente correcta, tem de se enquadrar no nível de exigência ética da globalidade da sociedade em que se insere e a que se dirige, tem de ser um acto de bom senso exemplar, e tem que ser claramente fundamentada e explicada. Ora, em meu entender, o produto destes largos anos de luta judicial não é compreensível e poucos foram os que o tentaram tornar compreensível. Ou seja, tudo leva a crer que “não foi feita justiça” em termos úteis e adequados a uma sociedade democrática. Ouvem-se apenas as vozes bárbaras dos que sempre bradam por sangue, fogueiras e penas de morte quer para todos os que “se suspeite” serem pedófilos quer para a administração da justiça portuguesa no seu todo quer para todos aqueles de quem pessoalmente não gostem.



4. Não é, assim, de estranhar que também se ouçam magistrados a acusar procuradores, uns e outros a apontar para os advogados e vice versa, os jornalistas a denunciar tudo o que, na sua ignorância quase generalizada, julgam perceber, mas que viabilizem mais títulos tabloides, mais comentários de pseudo-comentaristas (com uma ou outra excepção), mais falsos debates sobre enganos, erros ou nada. Reina a confusão. Uma confusão aumentada, como de costume, pelos muitos que sabem e gostam de navegar nestas águas inquinadas, lançando boatos, manipulando a opinião pública, pressionando os agentes da justiça, lançando campanhas corporativas contra “os outros”.



5. O mundo da justiça não deve ser um mundo de silêncio total mas tem de ser um mundo de contenção por parte de todos e fornecer uma publicidade qualitativamente fidedigna e autêntica dos factos principais de cada processo para que os cidadãos saibam o que nele acontece e se decide e porquê. Já houve tempo em que o direito era, ele próprio, secreto, mas ainda hoje muito se faz no mundo da justiça que é deliberadamente escondido do “público”, das próprias partes litigantes e até de alguns decisores distraídos...



6. Direi, pois, que fiquei sem saber se os arguidos não confessos são ou não culpados, se os ofendidos são ou não vítimas, se esta decisão (ainda não final) é correcta ou não. Fiquei na mesma, portanto. Pressuponho abstractamente, porém, que no meio da amálgama de todos os milhares de páginas dos autos se poderá, aqui e ali, pressentir quer a existência de algumas eventuais vítimas e de alguns eventuais inocentes, quer de alguns falsos ofendidos e de alguns eventuais criminosos... Mas nada mais. A tragédia da Casa Pia é tão grande que em todo o lado se pressentem os seus sinais “responsavelmente” escondidos ao longo dos anos.



7. As decisões judiciais para terem qualidade devem tomar em conta o sobressalto social e axiológico existente em torno dos factos em apreço, mas devem fugir - têm de fugir ! - de toda e qualquer tentação para tornar o seu trabalho mais fácil ou mais “aceite”, fazendo coincidir ponto por ponto os seus juízos de cada pulsão da dita “opinião pública”. Por isso, os magistrados, em particular, devem ser pessoas com experiência de vida, acuidade de análise social, vigilância sobre si mesmos, sentido ético, espírito de defesa dos valores democráticos, ponderação, serenidade e respeito pelos demais intervenientes processuais. Deverão ter também uma razoável preparação técnico-jurídica, é certo, mas o essencial será sempre o que enumerei atrás.



8. A falta de meios no sector da justiça é simultaneamente uma realidade e um alibi para que tudo continue exactamente na mesma. Os bons agentes de justiça, mesmo nas actuais condições, devem fazer tudo para que a justiça funcione, com empenho e humanidade, mas não devem levar esse seu esforço até ao ponto de caírem em voluntarismos pessoais que ocultem as deficiências do sistema e, assim, as aumentem. Deverão sempre explicar caso a caso as dificuldades que têm, sem parar de exigir o necessário para que a justiça seja igual para todos, de qualidade e atempada. Não estão em causa as suas “carreiras pessoais” e o seu “bom nome”. Está em causa a administração da única justiça de que dispomos dentro de um estado de direito.



9. Mais do que as leis o que deve ser mudado é o modo e o empenho como elas são aplicadas e sindicadas pela sociedade.



10. Concluindo: o caso Casa Pia é apenas um exemplo que de bom só trouxe a aguda atenção social dada quer ao problema da pedofilia quer à escandalosa forma como o Estado cuida dos jovens que estão à sua guarda.



11. Na verdade, o maior culpado de tudo quanto se tem passado e se poderá continuar a passar nas múltiplas “Casas Pias” e instituições similares deste país é o Estado que ainda temos, não entendido em abstracto mas concretamente personificado em todos quantos desde partidos, governos e ministros a gestores, professores e assistentes (religiosos ou não) deixaram que ao longo dos anos se tivesse criado uma cultura e uma prática tão perversas e continuadas.









Mário Brochado Coelho

Advogados

6.9.2010

O José Manuel Fernandes sempre nos habituou a debitar estultices!

Para além da morte trágica de Sita Valles

Por José Manuel Fernandes, Público, 10.09.10

Crença na revolução levou a militante comunista a adoptar a violência - e depois a ser uma das suas vítimas



Sita Valles teve uma morte horrorosa. Foi torturada, violada e executada com vários tiros destinados a provocar sofrimento. Conta-se que se portou de forma corajosa e enfrentou os torcionários. E também ninguém duvida de que a orgia de violência desencadeada pelo regime de Agostinho Neto depois do 27 de Maio de 1977 foi um crime só comparável aos grandes massacres políticos do violento século XX.



Mas isso não faz de Sita Valles uma heroína. Ou, pelo menos, não devia fazer. Contudo, foi muito essa imagem que passou para os jornais aquando do lançamento do último livro de Leonor Figueiredo, Sita Valles - Revolucionária, Comunista até à Morte. Isto apesar de o livro, que mais do que uma biografia é uma reportagem longa, não apresentar a antiga militante e dirigente da UEC - União dos Estudantes Comunistas - apenas como uma idealista sem mácula. Isto talvez porque a obra não nos esclarece sobre o tema mais difícil: o da real responsabilidade de Sita na violência que, na Angola pós-1975, não surgiu apenas com a perseguição dos chamados "nitistas" após o golpe fracassado.



Quem era realmente Sita Valles? Uma revolucionária e uma comunista, como se diz no título do livro. E seguramente uma idealista, como alguns dos que com ela conviveram a descrevem. Mas também uma fanática, como se percebe de algumas passagens da obra e como o seu percurso confirma sem margem para dúvidas. Por isso valeria a pena ir um pouco além do seu martírio para tentar perceber os mecanismos do radicalismo político, sobretudo do radicalismo dos jovens intelectuais que aderem a ideologias extremistas.



O livro ajuda-nos nesta procura de respostas. Nascida em 1951, Sita cresceu na Luanda colonial numa família de origem goesa da classe média alta. Era bonita e inteligente, sabia utilizar o seu encanto e gozava de grande autonomia. Até entrar na Universidade não teve actividade política, na Faculdade de Medicina de Luanda ainda se aproximou de uns grupos maoístas, mas foi em Lisboa, para onde veio estudar em 1971, que mergulhou por completo na militância comunista e na UEC, onde se tornaria uma das figuras de maior destaque ao lado de Zita Seabra. Adepta entusiasta do regime soviético (estava em Moscovo no dia 25 de Abril, a assistir a um congresso), decidiu regressar a Angola no Verão de 1975 para, naquela que considerava a sua pátria, participar na revolução. Em Luanda aproximou-se ao sector ideologicamente mais ortodoxo do MPLA, de clara obediência soviética, encabeçado por Nito Alves e José Van-Dunem.



A adesão de Sita ao marxismo-leninismo foi uma adesão intelectual, muito no espírito do tempo que viveu. E o porquê da sua adesão a uma doutrina "global" é bem retratada nesta reflexão de Marcelo Caetano, apesar desta se referir ao integralismo lusitano: "O jovem, não tendo experiência, rejeita o empirismo. À medida que a sua inteligência se vai abrindo ao mundo das ideias, gosta de conquistar certezas resultantes de raciocínios ou neles apoiadas, quer poder discutir numa argumentação sem falhas, precisa de ter a segurança de uma doutrina bem estruturada".



As cartas à família, citadas abundantemente no livro, revelam alguém que não duvidava das suas certezas, os muitos testemunhos recordam uma militante com grande capacidade de argumentação e não faltam também os que recordam terem-na desaconselhado de voltar para Angola invocando a sua falta de experiência. Ou seja, a Sita Valles que nos é retratada é muito mais do que uma idealista, é uma militante capaz de abdicar de tudo em nome das suas certezas - e poucas doutrinas "armam" os revolucionários com tantas "certezas" como o marxismo-leninismo. O sectarismo e o radicalismo de Sita, que tantos ódios lhe granjeou na Luanda pós-independência, foi por certo apenas a manifestação exterior desse universo de "certezas" em que vivia.



Até aqui a jovem comunista não se distinguiria muito da grande maioria dos militantes radicais dessa época - ou só se distinguiria por ser mais trabalhadora, mais organizada, mais brilhante e... mais bonita. Só que Sita, em Angola, foi mais do que uma militante. Não restam grandes dúvidas de que desempenhou um papel maior no grupo de Nito Alves e José Van-Dunem. E, apesar de aí este livro ser quase omisso, também não deviam restar grandes dúvidas de que este grupo defendia soluções para Angola no mínimo tão radicais, e tão brutais, como as do grupo de Agostinho Neto. As prisões de Angola não ficaram cheias só depois do 27 de Maio. E, no próprio 27 de Maio, durante os confrontos que Sita acompanhou num comando de operações, os "nitistas" também fizeram muitas vítimas (existem mesmo dúvidas se não terão mesmo executado sumariamente alguns ministros afectos à linha de Agostinho Neto).



Que papel teve Sita Valles nestes acontecimentos? Até onde vai a sua responsabilidade na violência política? Este livro, como muitos outros, é omisso. Mas nada nos indica que esta "Comunista até à Morte" tenha sabido, ou conseguido, parar antes de se envolver na violência política - até porque a doutrina em que acreditava previa, e defendia, essa violência política. Mais: como notou Isaiah Berlin em The First and the Last, "causar dor, matar e torturar são actos geralmente condenados; mas se não foram cometidos para meu benefício pessoal e sim em prol de um ismo - socialismo, nacionalismo, fascismo, comunismo, de crenças religiosas fanáticas, do progresso, ou do cumprimento das leis da História -, então esses actos são aceitáveis".



Paul Hollander, que estudou a adesão dos intelectuais ao comunismo em livros como O Fim do Compromisso, também notou que "o culto da sinceridade, dos sentimentos fortes, e do desejo de agir consoante os mesmos - quer isto dizer, da autenticidade - tornou-se especialmente pronunciado na década de 60", uma época em que "a orientação para a acção cativou os radicais e tornou-se a sua marca característica". Sita Valles era, sem dúvida, uma filha desses tempos, alguém que levou ao limite a condição de "verdadeira crente", alguém que acreditava numa "doutrina infalível" e, assim, ficava imune não só às incertezas como às realidades quando estas se revelavam desagradáveis. Isso cegou-a - e levou-a a não ver a tragédia que se preparava e da qual seria, ela também, vítima. Jornalista (www.twitter.com/jmf1957)

Ainda a morte de Saramago

o El Pais e no Público é analisada a reacção do Vaticano à morte de Saramago, «un ataque denigratorio, una condena de un tono casi sarcástico, que suena casi a celebración por la muerte de uno de los intelectuales que más lúcidamente ha condenado los abusos cometidos en nombre de la religión». De facto, Saramago foi dos primeiros a perceber as reais implicações do que aconteceu no dia 11 de Setembro de 2001. O artigo que se segue foi publicado uns escassos dias depois dos atentados levados a cabo por fundamentalistas islâmicos em solo americano.


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O factor Deus

Por José Saramago - Nobel da literatura

Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos mas até a mais obtusa das imaginações poderá “ver” cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes. Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro.Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova Iorque. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo. Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são mostradas no próprio instante da tortura, da agónica expectativa da morte ignóbil. Em Nova Iorque tudo pareceu irreal a princípio, episódio repetido sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mas limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos trilhados, de merda. O horror agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefacção para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez “aqui estou” quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, numa chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdómen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda de um milhão de mortos, daquele Vietname cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atómicas que arrasaram e calcinaram Hiroxima e Nagasaqui, daqueles crematórios nazis a vomitar cinzas, daqueles camiões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta dos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas sem excepção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como os outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que isto seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os taliban, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente os textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conluio pactuado entre Religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos, o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa. E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gémeas de Nova Iorque e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela acção dos homens, cobriram e teimam em cobrir de torpor e sangue as páginas da História. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o “factor Deus”, esse está presente na vida como se efectivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o “factor Deus” o que se exibe nas nota de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos e não a outra...) a benção divina. E foi o “factor Deus” em que o deus islâmico se transformou que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o “factor Deus”, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem, acabou por fazer do homem uma besta. Ao leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiram, não peço que passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento se não puder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do “factor Deus”. Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se. José Saramago - Nobel da literatura (Transcrição do jornal “Público” de 2001/Set/18)



Sobre uma notícia do Expresso

“ 300 milhões de euros é no mínimo quanto os investidores portugueses têm de receber do falido Lehman Brothers, segundo os cálculos conservadores feitos pelo Diário Económico. São cerca de mil os credores portugueses do norte-americano Lehman, e entre eles encontram-se desde bancos a instituições religiosas, como é o caso do Santuário de Fátima. O BES, o Finantia e o Montepio Geral estão entre os principais credores do lado da banca.Na lista constam nomes surpreendentes como A Casa do Gaiato ou o Centro Social Padre David Oliveira Martins.Nada foi pago pela massa falida do Lehman, nem em Portugal nem nos EUA”.
Noticia do Expresso de 18/09/10
Duas considerações
1ª Já nem a ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana) se fia no IOR(Instituto das Obras Religiosas), vulgo Banco do Vaticano, e com razão, pois há dias, foi descoberta mais uma vigarice, perdão contabilidade criativa, no seio de tão pia instituição, dando continuidade às orientações deixadas pelo Cardeal Marcinkus.
2ªPelo menos três instituições bancárias portuguesas tinham avultados valores no Lehman, seguramente remunerados a taxas inferiores às que pagam quando pedem dinheiro no exterior.Haja alguém que me explique isto!!!
Humberto de Almeida

sábado, agosto 14, 2010

Continuamos a caminhar sobre um chão que se ausenta / Jerónimo Belo

Foi encontrado sem vida na sua residência na Namibia* Ruy Duarte de Carvalho- intelectual de grande estatura e dignidade e uma das vozes mais brilhantes da Cultura angolana, que cultivou vários saberes, deixando uma obra volumosa e ímpar, cobrindo domínios temáticos que vão da Antropologia Cultural à Pintura, passando pelo Cinema, Sociologia, História, etc.
Para além da sua actividade de investigador deixou-nos literatura de inegável qualidade.
Paz à sua alma.
Saudações amigas,
Jerónimo.

P.S.Continuamos a caminhar sobre um chão que se ausenta.
É gratificante constatar que o Ruy sobrevoou, com imensa dignidade, de muito alto os seus contemporâneos, superando a mesquinhez das - pequenas e grandes- baixezas e ódios domésticos em que o nosso quotidiano é-tristemente- um excelente exemplo.

Um tema de Thelonius Monk cuja beleza agreste tem muito a ver com os silêncios do Ruy

*-Desconheço a data.


Jerónimo Belo

Ruy Duarte de Carvalho/ Foi-se um dos ultimos dos melhores!


Com a morte de Ruy Duarte de Carvalho, no passado dia 12, Angola perde uma das suas maiores referências culturais.


"Um homem vem ardendo na sua segurança e depois semeia estrelas por aí.
Traz mãos pendentes onde o sangue aflui e punhos brancos de ostensiva fé. Mal suporta a claridade de um primeiro olhar. Ocorre-lhe de súbito o peso dos testículos, a densidade líquida das mãos, uma urgência antiga de projectar-se erecto. Um homem traz consigo um rosto opaco que a surpresa urdiu, o véu esculpido da certeza oculta, preserva no sorriso a segurança nata e oferece, no olhar, uma estação de cereal maduro.
.
Um homem chega e assume a personagem. Ilustra-se de faces, decompõe a fé, possui-se de um vigor insuspeitado, desvenda as claridades do seu peito, produz formosas coisas com seus dedos, põe-se a reordenar os horizontes, atinge mortalmente as formas com o olhar, progride nas tarefas da conquista e chama a si as referências do lugar. Da plataforma adopta a dimensão bastante ao seu critério de sentir-se livre, roda em si mesmo, elege as coordenadas e cumpre a sistemática invenção dos rumos.
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Um homem vem fundir geografias, polarizar as formas da manhã deserta, vem fecundar as latitudes nuas e violar segredos de falésias. Um homem vem, destrói a derradeira protecção da lenda, transita triunfante a bruma do silêncio, afaga, da idade, o corpo descuidado, revolve-se na febre, despoja-se de si e oferece o peito.
.
Um homem está a possuir-se de silêncio. Assume a quietude e embebe-se da forma. O céu, o sol, as pedras. Acumula-se em luz, em vento, areias, água e sombra. Um homem não é maisque a sua idade rematada aqui na dimensão da estepe, na explosão das águas, na secura dos troncos, na poeira dos ventos, na dolorosa persistência das ramas, na rasgada frigidez da noite, no escoante sobressalto dos sons, na líquida maré das estações exíguas. Um homem não é mais do que a sua austeridade de minério, a sua resistência euforbiácea, a sua ambiguidade de animal.
.
Um homem não é mais do que este volume em que progride, esta fatal grandeza em que se inscreve, esta ausência de idade em que transita, esta força de deus a que se entrega. A chuva é o seu gesto, a sua voz a voz da tempestade, e é já sua também a sombra da montanha, a forma do granito, o peso deste sol, a força deste vento. E o crime desta ausência, a maldição gratuita deste pó, a crueza incisiva desta luz, este temor passivo da extinção.
.
E se de novo aponta a face às faces e se projecta inteiro contra os seus, é escasso o vulto que transporta firme para conter o clima que lhe vive oculto. Semeará os gestos de um poder secreto, projectará as sombras que anunciam vento, afirmará cadências que reservam pasmo, deduzirá carícias que provocam medo, aspergirá sorrisos de indizível dor. Um homem ferve lumes de estações e espalha o medo à volta quando invade o espaço das fogueiras mansas.
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Um homem vertical em seu desgosto, perdido no seu eco, um homem que alterou conjugações de estrelas, é uma noção de espaço conquistado e em espaço se transmuda renovado.
Afunda-se porém na projecção do tempo e o seu viver assume a maldição do crime. Quando se expande, no eco dos seus actos, é para exceder barreiras de memória; quando em marés o seu amor se verte é para romper as margens da entrega; quando o seu canto atinge o tom da glória é para vergar o viço das searas; quando o seu vulto ansioso se anuncia é para ofuscar o brilho da alegria.
.
Um homem pára então para descobrir
que até o pranto lhe confere o crime
e a culpa que o investe sobrenada o tempo.


.
Decide então morrer
que a sua força aqui não se contém."


Ruy Duarte de Carvalho, in A decisão da idade, 1976

sábado, julho 17, 2010

O MPLA está de luto / Faleceu Manuel Agostinho Salvador Ribeiro

A Direcção do Comité de Acção de Bruxelas, envia a presente
menssagem para conhecimento, de todos os militantes e amigos do MPLA,
sobre o desaparecimento fìsico de um dos mais antigos militantes do MPLA
residente na Bélgica.
Queiram ler a Biografia, em baixo anexa, do camarada Salvador Ribeiro
que também foi Adido para a Cultura e a Imprensa da nossa Embaixada sediada
em Bruxelas.




BIOGRAFIA

MANUEL AGOSTINHO SALVADOR RIBEIRO


Militante do MPLA desde 1959

Em Junho de 1961 recebeu instruçoes do MPLA para sair de Portugal, onde era estudante, juntando-se a outros Camaradas que se refugiaram em França, tendo assim feito parte do histórico “grupo dos cem”.

Seguiu depois para a Alemanha e em seguida para Acra no Gana. De regresso à Alemanha foi recebido pelo Camarada Desidério Costa que lhe obteve uma bolsa de estudos para a Itália, onde se doutorou em Medecina Veterinária, em 1964, na Universidade de Perúgia.

Foi assistente do Instituto Zooprofilático da Úmbria, Itália, de Setembro de 1964 a Junho de 1965

Em Junho de 1965 foi para a Argélia onde ingressou no Instituto Pasteur, tendo aí exercido sucessivamente os cargos de Assistente, Chefe de Laboratório e Chefe de Serviço.

Entre outros trabalhos publicados, elaborou uma nova vacina contra a varíola do carneiro, aperfeiçoou uma outra vacina contra a raiva a uso veterinário e ofereceu ao Instituto Pasteur uma vacina a uso humano contra a raiva, para a qual foi obtido um brevet.

Entre 1967 e 1968 diplomou-se em Microbiologia e em Imunologia no Instituto Pasteur em Paris, onde foi colaborador científico.

Regressado a Alger, continuou as suas actividades na Delegaçao do MPLA, que dirigiu no ano de 1974.

Em Outubro de 1974 recebeu ordens escritas do falecido Camarada Presidente Agostinho Neto para seguir para Lusaka.

Em fins de Dezembro de 1974 foi para Luanda, integrado no primeiro grupo de Militantes do MPLA que partiu de Lusaka.

De Janeiro a Agosto de 1975, e sempre sob orientaçao superior, trabalhou no Huambo, no Instituto de Investigaçao Veterinária (IIVA).

Em fins de Agosto de 1975 foi nomeado, em Benguela, pelo falecido Camarada Saydi Mingas, Coordenador do Gabinete de Planeamento da Zona Centro, exercendo ao mesmo tempo o cargo de Director Regional da Agricultura.

Em fins de Outubro e princípios de Novembro de 1975 tomou parte na batalha de Katengue contra os invasores sul-africanos.


Foi membro do Grupo de Trabalho de Restruturaçao do Ministério da Agricultura, em Luanda, de Dezembro 1975 a Fevereiro de 1976.

Em Fevereiro de 1976 regressa a Benguela como Dirigente da Comissao de Emergência da Província de Benguela e Director Provincial da Agricultura.

Solicitado pelo Ministério da Educaçao vai para o Huambo, em Abril de 1977, como professor agregado e responsável pela Direcçao da Faculdade de Ciências Agrárias.

A 28 de Janeiro de 1978, foi vítima duma emboscada montada por elementos da UNITA, quando seguia para Luanda, em serviço da Universidade, na sua qualidade de Director da Faculdade de Ciências Agrárias, ficando entao inválido (tetraplégico).

Graças à intervençao do falecido Camarada Presidente Agostinho Neto foi enviado de urgência para a Holanda, para tratamento.

Após diversas operaçoes cirúrgicas e meses de tratamento na Holanda, regressa ao País.

Em 1981, o seu estado de saúde estando a degradar-se progressivamente, um grupo de Camaradas, por iniciativa do Camarada Garcia Bires, entao Vice-Reitor da Universidade Agostinho Neto, achou melhor mandá-lo para a Embaixada de Bruxelas, para estar perto da Holanda onde podia continuar os tratamentos clínicos.

Na Embaixada da República de Angola em Bruxelas ocupou os cargos de Adido de Imprensa e Assuntos Culturais.

Foi também Coordenador da Célula do MPLA/PT na Embaixada de Bruxelas, desde 1983 até à data da extinçao desta Célula.

Teve a honra de ser condecorado pelo Camarada Presidente José Eduardo dos Santos com a Medalha de Combatente da Luta Clandestina.

quarta-feira, julho 14, 2010

A Origem dos Ovimbundu: a hipotese mais proxima da realidade

Mbela Issó






A origem dos ovimbundu tem sido motivo de estudos apaixonados por parte de vários historiadores. Uma das razões para que isso aconteça, tem a ver com o fato de se tratar de um grupo étnico que marcou (e continua a marcar), de modo profundo, a história econômica, social, política e cultural da porção de território que hoje se chama Angola.



Na verdade, este grupo étnico, destacou-se muito cedo. Assim, temos, em primeiro lugar, a enfatizar a resistência tenaz que manifestou contra o invasor colonialista; em segundo lugar, a sabedoria de alguns dos seus reis, que lhes permitiu estender as suas relações comerciais até ao Zanzibar (Oceano Índico); em terceiro lugar, a exploração desenfreada a que foi vítima durante o regime colonial (roças, pescarias, fazendas de algodão, café,etc.) que levou muitos ovimbundu a emigrarem para os países vizinhos. Por último, e na história mais recente, o fato de ter surgido, no seio deste grupo étnico, uma rebelião armada, cujas conseqüências ainda estão para ser descritas.
A origem dos Ovimbundu é, de acordo com os historiadores, sempre vista dentro dos processos migratórios Bantu (Os ovimbundu, tal como a maior parte da população que vive a sul do equador é Bantu, por pertencerem a um grupo lingüístico que utiliza a raiz ntu para se referir ao homem. O acréscimo do prefixo Ba (plural)- Bantu surge, assim, para designar esta população no seu todo). Recorde-se que alguns investigadores têm avançado hipóteses segundo as quais os Bantu teriam vindo da Ásia ou da região de Bahar-el-Ghazal e que se teriam fixado nos grandes lagos. Muito para além das formulações hipotéticas é um fato comummente aceite entre os investigadores de que os Bantu devem, provavelmente, ter vindo das mesetas de Bauchi (Nigéria) e dos Camarões. Mas tudo aponta no sentido de serem originários do Noroeste da floresta equatorial (vale de Benué) e que durante milhares de anos se foram fixando em vários pontos da África. As migrações, como são óbvias, tiveram várias causas entre as quais podemos apontar as de caráter político (defesa e luta pela sobrevivência de um grupo face ao outro); econômico (ligadas às catástrofes naturais que faziam com que os Bantu procurassem terrenos mais férteis). São os problemas que Basil Davidson designou como sendo de caráter físico. Por último, podem apontar-se os desentendimentos dentro dos vários clãs (problemas ligados à sucessão ao trono).





Ekuikui II :Artífice da estratégia "vergar o adversário pela economia"


Relativamente a Angola é de referir que os Bantu angolanos, são originários do que se tem designado por 2º Centro Bantófono (Baixo Congo e Planalto Luba).Os ovimbundu seriam, assim, descendentes dos Bantu que se fixaram no planalto central. No entanto, as hipóteses acerca da origem dos ovimbundu são várias e nem sempre consensuais. As referidas hipóteses dividem-se entre aquelas que afirmam que os Ovimbundu teriam vindo de Benué (um vale situado numa região a leste da Nigéria); as que defendem a idéia de que seriam resultado de uma miscigenação de outros grupos e as que os consideram como descendentes dos autores das pinturas rupestres de Caninguiri (Kañilili).
De acordo com a primeira hipótese os ovimbundu, conforme os seus autores, teriam passado pela faixa Atlântica, fixando-se em Benguela. E dado o fato de serem agricultores dirigiram-se ao planalto do Huambo e Bié, cujas terras eram as mais férteis. Esses autores sustentam esta hipótese com dados provenientes da lingüística. Assim, segundo ele, alguns dos termos utilizados pelos Ovimbundu, ao invés de se aproximarem aos usados pelos Bantu mais próximos assemelham-se mais aos do povo Igbo da Nigéria. É o caso do termo "Suku" (deus) "omunu" (pessoa,) "twendi" (vamos). Os kimbundu por, exemplo, utilizam o termo Nzambi para designar Deus.
Os defensores da segunda hipótese afirmam que os Ovimbundu são uma síntese de vários grupos étnicos. E, consequentemente, defendem a idéia de que este grupo não tem um caráter homogêneo. Estão à vista os aproveitamentos políticos que se podem fazer desta interpretação. Uma vez que se pretende, com este ponto de vista, provar que os Ovimbundu não são um grupo étnico unitário, e muito menos têm uma especificidade cultural e étnico-linguística próprias.
Os estudiosos, defensores desta hipótese, apegando-se em aspectos lingüísticos, afirmam que os Ovimbundu seriam descendentes dos Bakongo, uma vez que, segundo eles, a língua umbundu é uma síntese do Bantu-Kongo e do Bantu-Lunda. Na verdade, esta hipótese, possui uma certa evidência científica, pois os Ovimbundu, pela posição que ocupam no planalto central, teriam ligações com os Ambundu da baixa de Kasanji; com os Cokwe e os Lunda. E mesmo a sua grande versatilidade, a sua impressionante capacidade de adaptação aos diversos habitat, poderia ser explicada a partir desta simbiose; desta miscigenação que não se cingiu apenas a aspectos lingüísticos e biológicos;mas também à adoção de saberes, técnicas, formas coletivas de luta contra a adversidade da natureza.
Esta hipótese, a mais aceite pelos vários historiados, viria a levar um rude golpe, criando assim, várias dúvidas, com a descoberta da estação arqueológica de Kaniniguiri (Kaniñili). É de referir que esta se situa nas áreas do Mungo e do Bailundo e remonta a milhares de anos (9600 anos ou 9670 anos em idade absoluta). O que mostra que, paralelamente, as comunidades pré-bantu (Bosquímanos,os Vátuas e outros) existia, na região do planalto, uma comunidade, de onde saíram os autores das famosas e impressionantes pinturas ruprestes de Kaninguiri. E, se para além das evidências arqueológicas, nos ativermos à tradição oral, que apresentaremos quando falarmos da história de cada subgrupo étnico em particular, podemos tirar a seguinte conclusão: existem evidências claras que apontam no sentido de os Ovimbundu serem descendentes diretos dos autores das pinturas de Kaninguiri e que foram sofrendo, num processo de "osmose", influência dos grupos Bantu que se iam fixando nas proximidades. Saliente-se que, de acordo com alguns historiadores, as migrações dos Bantu, em Angola, devem ter iniciado no século XII com a entrada dos Kikongo; dos va-Nyaneka no séc XVI, dos Ngangeula, no século XVII, dos Ovambo e dos Cokwe, no século XVIII e dos Ovakwangali no século XIX.
O grupo étnico dos ovimbundu é, atualmente, formado por vários subgrupos :va-mbalundu, va-vihé, va-wambu, va-ngalangui, va-kimbulu, va-ndulu, va-kingolo, va-kaluquembe, os va-sambu), va-ekekete), va-kakonda), va-kitatu, va-sele, va-mbui, va-hanha, va-nganda va-chikuma, va-dombe e va-lumbu). Estes subgrupos vivem na região que compreende o Huambo, zona de solo fértil e onde se pode cultivar cereais, pomicultura, horticultura, etc. Para além disso, possui boas condições para o gado, especialmente bovino; é de referir que algumas províncias como a Huíla possuem regiões onde a população é majoritariamente Ovimbundu (Caluquembe e Caconda); o Bié, igualmente uma zona fértil e de clima saudável; Benguela, região igualmente com terrenos muito férteis e onde existem minérios de cobre,ferro,enxofre, sulfato de sal,etc.e numa parte do Cuanza sul.
Por fim resta-nos apenas dizer que os futuros estudos a efetuar querem ao nível da lingüística, quer da arqueologia,quer ainda da tradição poderão aportar outros dados importantes para o conhecimento relativo a origem dos Ovimbundu.

quarta-feira, julho 07, 2010

OSCAR MONTEIRO - Paulo jorge, de mensageiro a meu heroi

Paulo Jorge do MPLA: De mensageiro a meu herói
ERA Maio em Paris de 1963. A viagem de fim de curso dos quintanistas de Direito da Universidade de Coimbra oferecia-me uma oportunidade inesperada de fazer algum contacto com os meus colegas que entretanto se haviam juntado aos movimentos de libertação, alguns cabo-verdianos, na maior parte angolanos. Eu vivia em Coimbra numa república de estudantes anticoloniais, de onde regularmente se fugia ou se era preso.

Maputo, Terça-Feira, 29 de Junho de 2010:: Notícias

Parto armado dos endereços de Saint Aubin, que como o nome não indica era cabo-verdiano, brilhante matemático e o contacto fornecido pelo núcleo de estudantes do PAIGC em Portugal de cujo relatório eu era portador. Em Paris, Saint Aubin recebe o relatório e com António Avidago, um angolano branco, que tinha sido meu co-repúblico, informam Marcelino dos Santos que era em Rabat Secretário-Geral do órgão de coordenação dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, a CONCP, que eu estava nas paragens. No Quartier Latin vou ao ponto de encontro dos estudantes nacionalistas no Café Odeon onde me encontro com Sérgio Vieira que era dirigente da UNEMO, União de Estudantes Moçambicanos e muito brevemente com Joaquim Chissano, colega do liceu, que já era Secretário do Presidente Mondlane em Dar es Salaam e que havia chegado essa manhã mesmo de uma viagem aos Estados Unidos. A nossa viagem prossegue para a Alemanha (Koln e Bonn) e para a Dinamarca.
No regresso, passo de novo por Paris onde me aguarda Paulo Jorge. Paulo tinha a missão de estabelecer ligação com Portugal e Angola. Trabalhava numa empresa gráfica e com o seu salário apoiava a representação do MPLA que era a casa de Inocêncio Câmara Pires. Câmara Pires era um personagem de lenda. Descendente das grandes famílias mestiças de Angola, dono de considerável fortuna ao que diziam, havia entregado o que tinha ao MPLA e agia em Paris como representante do MPLA. Um homem formoso de tez morena, e quando o conheci já com uma farta cabeleira e barba branca, um Hemingway bem penteado e bem parecido, deveria ter sido famoso entre as mulheres. Casara com a Viscondessa de Caumont de quem enviuvara. Câmara Pires era um Compagnon de la Résistance medalhado, havia participado na resistência contra os nazis. Por isso numa França aliada de Portugal, as suas actividades eram toleradas. A sua casa era modestíssima, na Rua Hippolyte Maindron no 14ªeme arrondissement (bairro), na altura um quarteirão menos considerado em Paris.
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Paulo Jorge transmite-me a mensagem com o acordo ou orientações que havia recebido de Marcelino: que constituíssemos um órgão de coordenação dos estudantes com MPLA, PAIGC e FRELIMO e indica-me os contactos do chefe clandestino do MPLA, Álvaro Santos, que me descreve como um mulato cafuso conhecido por Zefo e Jorge Querido, estudante de engenharia do PAIGC. Remete-me ainda um calhamaço de boletins e comunicados dos movimentos de libertação entre os quais os primeiros documentos da FRELIMO que havia sido fundada no ano anterior, publicações obviamente proibidas que eu não sabia como esconder no comboio na passagem das fronteiras, mas que não tenho coragem de recusar com receio de passar por medroso logo à primeira.
Em Portugal o grupo devidamente constituído inicia em colaboração com um colega de liceu, natural da Zambézia, Álvaro Mateus, “Dallas”, a publicação do “Anti Colonial”, uma publicação regular clandestina, escrito por nós mas editado nas imprensas do Partido Comunista, em papel bíblia ou papel de mortalha de cigarro. Temos na altura uma divergência sobre a difusão das notícias de fonte UPA-GRAE que o Partido Comunista achava que se devia difundir de qualquer modo. Outra história. Só releva aqui porque é no decurso da distribuição desse boletim que venho a ter que atravessar a fronteira para chegar a França. Depois de detido em Poitiers, sigo para Paris. O 7 Hippolyte Maindron estava na minha cabeça porque era para lá que eu enviava os relatórios do trabalho em Portugal – parece que só foi um e encontrei-o nos arquivos do Marcelino com o pseudónimo demasiado óbvio de Fernando Santos. Para lá me dirigi a pé ao sair da Gare de Austerlitz. Estão lá Câmara Pires, Paulo Jorge e a jantar nessa noite os Margaridos, Alfredo e Manuela. Aí sou acolhido aos abraços, tomo o primeiro banho depois de quatro dias, como e durmo num colchão no chão, sob os olhares solícitos dos angolanos. No dia seguinte, os meus camaradas João Ferreira e Jacinto Veloso, que se haviam juntado à Frente de Libertação pilotando um avião da Força Aérea Portuguesa tomam conta de mim.
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No tempo de Paris frequento bastante Paulo Jorge, aprecio a sua simplicidade e o seu método. Mas é na Argélia que se cimenta a nossa amizade e – palavra essa que figura no museu das antiguidades da revolução – a nossa camaradagem. Somos ambos representantes dos nossos movimentos. Estando eu sozinho, pedi e passei a comer em casa dos angolanos, onde viviam o Adolfo Maria e esposa, Pepetela e Maria do Céu Reis e onde comiam também Hélder Neto, que perece na intentona nitista, o artista e etnólogo Henrique Abranches, Zé dos Kalos, meu antigo com repúblico de Coimbra e economista e Jorge Pires que como general dirigiu a logística das FAPLAs. Paulo Jorge concertava com mestria este conjunto de pessoas tão complexas, basta ver os conflitos que irromperam depois de ele sair e a que só o Presidente Neto conseguiu pôr cobro.
As funções das representações eram de difusão de informação na Argélia e nos países de expressão francesa para que os argelinos contribuíam com um subsídio mensal de dois mil e quinhentos dinares e no período final quatro mil dinares. Outras funções eram o relacionamento com as autoridades argelinas, nomeadamente pedidos de ajuda financeira directa, coordenação da acção diplomática na OUA e organizações internacionais e outras questões administrativas como passaportes, trânsito de militantes, bilhetes.
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Mas havia um forte engulho. Nesses anos sessenta, o Governo argelino sob a influência de Franz Fanon, com as suas teses legitimadoras da violência dos oprimidos, havia reconhecido o GRAE de Holden Roberto. A sua viúva Josie, colega de Aquino de Bragança no jornal “Révolution Africaine”, velava sobre esse património como vestal do templo, até já aos anos setenta. Tínhamos que mudar a situação: Aquino fez muito por isso ao nível do jornal e da opinião. Mas faltava fazê-lo ao nível institucional. Com Paulo Jorge, aproveitámos uma convocação de todos os movimentos de libertação para concertar uma revolta daqueles que se auto-intitulavam os movimentos de libertação autênticos – e que éramos nós, claro! – MPLA, FRELIMO, PAIGC, ANC, ZAPU, SWAPO contra a “Unholly Alliance” (a aliança ímpia) que eram os outros. Fizemos o representante do GRAE sair da sala.
Mais tarde volto a encontrar Paulo Jorge como Chefe das Relações Exteriores da Presidência com o Presidente Neto. Estamos juntos com Samora e Chissano, Nyerere e Garba na grande batalha diplomática pelo reconhecimento do Governo do MPLA, na OUA em Addis-Abeba, onde a nossa vitória foi conseguir um empate de 22 a 22. Mais tarde como Ministro das Relações Exteriores estamos juntos na batalha da Namíbia e da SWAPO. Em 1978 vamos ambos às Nações Unidas. Andrew Young, o primeiro negro na Administração americana e seu representante nas Nações Unidas, convoca-nos para o seu escritório em frente das Nações Unidas a dois passos do nosso hotel, o UN Plaza, para trocar ideias. Os Ministros da Linha da Frente dos países anglófonos vão ao encontro. Paulo Jorge e eu decidimos que o encontro não é ao nosso nível. Vão os nossos colegas de delegação. Éramos assim em 1970...
No dia seguinte, domingo, alertado por Andrew Young, Cyrus Vance, Secretário de Estado de Jimmy Carter, homem de delicado trato, vem ao nosso hotel, hospeda-se numa suite onde nos recebe, a começar por Paulo Jorge. Os nossos colegas anglófonos estão estupefactos.
Paulo Jorge deixa nome na diplomacia africana pela sua defesa apaixonada da posição de Angola e pelo seu reconhecimento no mundo. Chissano contou-me da troca de argumentos entre Senghor e Paulo Jorge na OUA. Quando Senghor, excelente pessoa de resto e poeta que agora redescubro, começa com as suas divagações sobre a política, “on parle beaucoup d’imperialisme, mais qu´est-ce l´impérialisme” ? ou seja estamos aqui a falar muito de imperialismo, mas o que é esse imperialismo, Paulo Jorge levanta-se e diz: “L´impérialisme, Mr. Le Président, est le stade suprême du capitalisme. C´est écrit sur la couverture !”( O imperialismo, Senhor Presidente, é o estádio supremo do capitalismo. Está escrito na capa!) aludindo a um famoso panfleto muito lido entre os políticos na época, da autoria de Lénine, Éditions Sociales, Paris.
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Conheço a sua vida e a sua casa. Conheci também os seus Gabinetes e Residências como Ministro e Governador de Benguela. Agora que está em Moçambique para participar em nome do seu Partido no simpósio sobre o legado de Samora Machel – que bem o MPLA soube escolher! – quis que viesse conhecer a minha família, a minha mulher e filhos, na terra onde nasci. O meu país, diferente por aquilo que a sua geração fez e à qual naquele dia de Maio de 63 em Paris, com Marcelino me fez pertencer. Riqueza e sentido que jamais poderei reconhecer à justa medida.
Mas Paulo Jorge é para mim e para muitos mais do que as recordações comuns. Haverá outros Ministros e outros dirigentes melhores. O que caracteriza Paulo Jorge é a sua constância. Em tudo o que é essencial, em tudo o que comanda a vida, Paulo Jorge permaneceu igual a si próprio. Nas amizades, na família – o que nos tempos que passam reconheça-se é um recorde absoluto, só por si merecedor de uma estátua –, nas convicções e na sua coragem. Fala quando é preciso, sem querer nada para ele. É um homem sem medo. Por isso ele é venerado.
É um puro. É um dos meus heróis.
Oscar 8 de Outubro 2003 em Maputo, Avenida do Zimbabwe.
Este texto foi lido e entregue a Paulo Jorge. E publicado hoje pela primeira vez.
• ÓSCAR MONTEIRO - O texto é uma homenagem ao nacionalista e deputado da Assembleia Nacional de Angola, Paulo Teixeira Jorge, falecido sábado passado, em Luanda.